De Teerã para a Rua do Senado

Olhares gringos sobre o Rio de Janeiro

Você provavelmente não teria percebido como a moça andava com uma mãozinha pressionando, levemente, a clavícula. De jeans e tênis, coberta por uma camisa de flanela comprida, sua vestimenta era tão discreta que a delicadeza do gesto extremamente feminino agregava um charme à moça jovem e bonita que andava devagar, fingindo não olhar tudo ao seu redor. Seus cabelos longos castanho-claros, quase loiros, enquadravam um rosto marcante com seus olhos grandes e escuros, um olhar doce acima de um nariz aquilino. Um rosto que nunca usou maquiagem e nunca precisará usar.

Mas o irmão dela percebeu bem o gesto.

Pelo tom, só compreendi que ele a havia censurado em seu idioma; depois, a risadinha dos dois me deixou curioso para saber o que transcorria.

“Está vendo, Ricky, como o meu país está deformando as mulheres? ” Meu amigo começou a procurar a explicação em inglês. Ele reparou que ela estava segurando com a mão, na altura da clavícula, o nó do véu que ela não estava usando. Pois era a primeira vez em que ela andava pela rua sem o véu cobrindo o cabelo, mas o hábito estava intrínseco. Aliás, não era somente a primeira vez dela no Brasil, era a sua única vez fora do próprio país; era a primeira vez que via o mar. E era a primeira vez que a jovem assumia um papel de muita coragem e responsabilidade na sua família, atravessando o mundo para socorrer e levar de volta seu irmão, meu amigo, que havia sofrido um problema de saúde tão grave que havia necessitado de cuidados dos amigos.

Tentei imaginar como ela estava percebendo as coisas aqui no Brasil, ela que vinha de um país e uma cultura completamente diversos. Como conheço bem sua cultura, não entendi como os pais dela haviam permitido que viesse para cá sozinha – mesmo com o intuito de socorrer o irmão. Muitas vezes já é complicado para visitantes oriundos de culturas ocidentais nadar nesse mar de emoções que é o Rio de Janeiro… mas Irã? Talvez um dos países mais seguros do mundo. Será que eles têm noção dos riscos que se corre nas ruas do Rio de Janeiro?

Quiçá porque eu tenha chegado justamente a uma idade na qual o medo tende a crescer na medida do conhecimento supérfluo sobre possíveis ameaças, eu estou ficando cada vez mais assustado com a violência do Rio de Janeiro. Lembro-me como sonambulava feliz pela cidade 20 anos atrás, descobrindo um mundo novo, ainda inconsciente dos perigos, embora nunca incauto. Uma bela dose de medo sempre me protegia, talvez demais, mas não impedia umas besteiras imaturas – bom, de vez em quando, de leve. Afinal, fui nascido e criado numa cidade com um leque de tensões urbanas que me fez aprender a circundar as pedras no caminho. Minha cidade natal, Chicago, é uma metrópole bastante complicada: recentemente celebrou o feriado do 4 de julho com nada menos de cem baleados, apesar da força-tarefa federal enviada para ajudar a conter a violência.

Não por isso alguém deve evitar Chicago, como tampouco deve-se evitar o Rio de Janeiro pelos respectivos índices e relatos de violência. Obviamente, não dá para comparar as dimensões e a forma que essa violência se manifesta entre as duas cidades, devido aos contextos diferentes, mas a má fama se converte em medo da mesma forma e independente do lugar. Sei bem como funciona essa complexidade de um lugar maravilhoso, mas infame. Talvez por isso eu tenha sido solidário anos atrás, quando cheguei a Rio de Janeiro, em não falar mal da cidade. Ou talvez eu tenha me contagiado pelo costume local de não suportar que forasteiros critiquem o Rio, enquanto nativos podem esculachá-la à vontade. Se fosse só aquela velha ética de poder reclamar da própria mãe, mas não admitir que ninguém fale mal dela, não seria muito diferente de outras cidades que conheço. Contudo, tanto amor e ódio pela cidade por seus nativos é um fenômeno que nunca presenciei em outro lugar. Como muitas inconsistências básicas do ser humano, tem hora certa para encará-la, outras para simplesmente aceitá-la.

E a hora de encará-la chegou para mim recentemente, na ocasião da visita de um amigo meu, grego, uma pessoa que até então tinha conhecido muito deste mundo, menos o Brasil. “Mas eu não sei porque esperei tantos anos para vir para cá, Ricky! Eu sempre quis conhecer o Rio de Janeiro, mas sempre fiquei com receio… todo mundo me falou que a cidade era tão perigosa. Eu tô achando a cidade tão linda! Eu não sinto perigo nenhum. Então, te pergunto: qual é? É tão perigosa assim?”

Aquela dúvida pairou infeliz e sinuosa, como fumaça de cigarro entre nós. Se fosse outra pessoa, talvez eu já tivesse dado aquela resposta polida para manter minha solidariedade com a cidade e não apavorar meu amigo e hóspede, fazendo um malabarismo para não cair no lado da omissão, nem tampouco tropeçar no exagero e horripilar meu amigo, uma turista em férias, que precisava se divertir com a cidade e não saber sobre certas intimidades dela. Mas essa pergunta – oriunda do meu amigo que usava a benção dos recursos de tempo e dinheiro de férias para investigar e crescer no mundo e não apenas para se distrair – não era apenas uma dúvida, uma curiosidade dele. Conhecia-o o suficiente para saber que ele gostava e não tinha medo de inteirar-se da realidade ao seu redor.

Então diante de mim surgiu uma oportunidade não só de ter uma opinião, mas de pronunciá-la. Um momento delicado porque, quando ouvidas, as palavras ganham uma força e vida muito dificilmente reversível. Bem que eu já andava conferindo com meus amigos cariocas: “Mas sou eu ou a cidade está muito mais perigosa?” Averiguei com as mais diversas castas e idades da cidade e, embora já tivesse concluído que me sinto inseguro pela cidade – mesmo descontando aquele medo que vem ao envelhecer, quando sobram informações e apegos – não era só meu o sentimento de que a segurança da cidade piorou e muito.

Com uma respiração profunda, olhei fixamente nos olhos dele para fazer uma confissão, um desabafo, não dava para segurar mais: resolvi falar mal da minha mãe.

“Bom, primeiro: esta cidade não é bonita; é feia. Mas está no lugar mais bonito do mundo,” observei, mas essa já foi uma conclusão à qual cheguei há muito tempo, uma que precede minha opinião sobre (a falta de) arquitetura e urbanismo e antes da minha explicação que a cidade é amada por mim do jeito que ela é, exatamente como uma pessoa deixa de ser uma paixão para virar um amor no momento em que se enxerga não só as qualidades agradáveis, mas se aceita o pacote todo, com o lado B e suas coisas desagradáveis – aquela lista ofuscada pela paixão.

Na segunda parte, então, foi mais difícil conjurar as palavras para lhe responder à pergunta: “Confesso que não me sinto à vontade circulando pela cidade como fazia antes. No momento, estamos numa encruzilhada política, social e econômica no Brasil. Por incrível que pareça, a segurança se tornou menos importante numa cidade à deriva. Acho que você poderia ter vindo a conhecê-la numa época mais feliz…”

“Não, Ricky! Não fala isso, não. A hora em que acontecem as coisas é sempre a certa.”

“Quem dera…”

“Mas eu nunca conheci um lugar tão alegre, tão feliz! O povo é maravilhoso! Não me sinto inseguro, nem um pouco.”

Se fosse outro viajante, talvez eu notasse um tom desafiador em sua voz, como a daqueles aventureiros que, por soberba, têm a necessidade de contrariar a experiencia do outro. Pense naqueles que escalam os paredões rochosos de montanhas pelo mundo, sem nada, só com as mãos.

Mas esse meu amigo não era um daqueles gringos que já socorri quando caíram, achando que iam descobrir o Rio de Janeiro de uma vez por todas. Na minha casa em Santa Teresa, privilegiada com seu jardim e vista panorâmica da cidade, ele já tinha distinguido a diferença dos barulhos diários de fogos de artifício e tiros – balas. Não dava para desconversar mais sobre aquilo. Então a sua pergunta queria esclarecer a relação entre o que ele estava observando e o que estava sentindo. Eu já tinha entregue o melhor Rio de Janeiro possível para as férias dele e ele já estava seduzido pela cidade. Estava completamente encantado, como nem eu fiquei a primeira vez com o Rio, então resolvi compartilhar o outro lado, o lado B.

“Tá vendo aquela casa ali? Lá no mato? Lá, lá embaixo? Faz um mês que ouvi um único tiro, forte, que me deu um susto de tão próximo. Um policial matou um pai de oito filhos na porta da casa dele, por engano – ou não. Eu ouvi tudo. Tudo! A mulher correndo, gritando ‘socorro’, o desespero dos filhos chorando PAI! aos berros. Apesar de já ter ouvido vários episódios desses, foi a primeira que quase me fez vomitar. Era tão perto e eu, inútil. Ouvi tudo! Aquele chão do meu escritório, onde sempre fico? Já me joguei ali uma três vezes nos últimos anos por causa de metralhadoras atirando para o alto. Você me perguntou porque a gente não espera o ônibus na parada na frente de casa. Tem assalto semanal já, por motoqueiro. Só ando de táxi ou até paro o ônibus como se fosse táxi – eu andando – mas não fico parado na rua, para não deixar ninguém me medir com antecedência. Um dos meus raros deslizes de cautela acabou com uma faca apontada para o meu peito, me roubaram tudo menos a minha vida – uma grande benção, já que conheço, pessoalmente, duas pessoas que foram esfaqueadas. Faz meses que dois turistas italianos foram fuzilados ao entrar na favela lá no final dessa minha rua. No ano passado, o cardeal da cidade se jogou no chão ao lado do carro dele, parado no meu portão, para se proteger de balas. Bom, enfim, essas são as experiências ao meu redor — hão Rios de Janiero que desconheço — mas se quiser mais, é só ver as desgraças diárias no jornal. Esta semana, então, enquanto a gente estava se divertindo por aí, fiquei sabendo pelo noticiário de duas crianças que foram baleadas. Daí podemos imaginar aqueles casos que não chegam a conhecimento público e também aqueles que sequer são reportados, que ninguém nunca vai saber. Quer mais?”

“Não! Valeu. Entendi.” A resposta foi veloz e ele sorriu com um humor ágil, que contrastou o corpo grande e lento, naturalmente forte sem se esforçar. Na verdade, eu deveria me sentir mais seguro andando pela cidade com ele. Em outros lugares, um homem daquele tamanho não seria exatamente um alvo para a marginalidade, mas o Rio de Janeiro já fugiu destas regras tradicionais há muito tempo, uma vez que os nervos, cobiças e as armas estão se encontrando de uma forma tão vil. Então me preocupei com sua curiosidade para conhecer os vários Rios. O grego não se interessava pelas praias da cidade, uma olhada bastava. Na Grécia já temos praia, esclareceu. Com o gosto parecido com o meu, sua estada curta não foi atrapalhada por uma semana chuvosa: gostou demais do Centro histórico, de Santa Teresa, da Zona Portuária e Morro da Conceição. Ficou impressionado com a Praça Mauá e o bonde; eu resolvi poupar-lhe minha opinião acirrada sobre o custo-benefício daquilo e muitas outras obras públicas que levaram a prioridade. Ao final, toda obra pública acaba sendo bem-vinda, (in)felizmente, e o meu amigo visitante não precisava daquela narrativa.

Um dia dos poucos dias de sol foi bem gasto na Urca, com a subida do Morro da Urca e uma cerveja na mureta do outro lado. Foi bom até se molhar um pouco em um dia daqueles de sol e chuva no Jardim Botânico.

“Então, fico feliz que você tenha adorado tanto a cidade e se sinta bem aqui, mas saiba que são muitos os cálculos que a gente faz aqui ao sair pela porta de casa até chegar de volta. Não é fácil. Não são só tempo, clima e dinheiro as variáveis medidas para escolher um lugar. É também a hora de visitá-lo e a condução para chegar lá. Virou tão automático que só me dou conta dessa vigilância constante quando saio do país – no exterior, demoro uns três dias para relaxar e desligar o monitor…Me desculpe. Talvez nem devesse ter contado estas coisas para você.”

“Nada! Imagina! São exatamente estas coisas que gosto de aprender. O meu país também anda mal – à beira do caos, na verdade – e não pela primeira vez. Não pensa que há um momento melhor para fazer as coisas, para visitar um lugar. Todo momento é o certo. Tem uma razão por trás de tudo isso que precisa ser vivido. Relaxa. Tô bem satisfeito de ter visto o Rio que você gosta e grato por você estar cuidando de mim”.

Brindamos.

A visita do meu amigo foi tranquila. Cosmopolita (a palavra grega como ele) e muito mais viajado do que eu, já sabia que o cara ia se virar em qualquer lugar – bem ao contrário dos iranianos que caíram debaixo da minha guarda.

Não só pela cultura deles.

Ambos irmãos são cientistas, pesquisadores. Pessoas que por natureza dedicaram muito mais tempo a desenvolver instintos analíticos do que instinto de rua. Ou seja, dobrei, quadripliquei minha cautela, especialmente ao saber a resposta para a minha dúvida: “Como teus pais deixaram ela vir para cá?”

“Ricky, os meus pais não sabem que ela está aqui, ” revelou o meu amigo, me tirando o balde de gelo. Ele me explicou as trapaças dos seis irmãos para esconder a verdade dos pais, que não podiam saber nem do problema da saúde dele, nem que fosse ela a escolhida para viajar. “Eles iam morrer. Eu seria responsável pela morte deles…Ricky, é que lá as coisas são diferentes. Infelizmente, é melhor mentir. Tem coisas que não se pode falar aos teu pais…”

“Não precisa explicar! Imagina! Eu sei bem como as coisas são na Ásia! Tenho um mar de histórias sobre como navegar numa família indiana!”

“Ela adorou a sua casa. Mas, ao entrar, ela me perguntou se ela estava na Índia ou no Brasil…”

“Espero que vocês estejam confortáveis e à vontade. Se faltar alguma coisa, é só me falar, por favor. ¡Mi casa es tu casa!

A semana deles no Rio não foi muito acompanhada por mim, devido ao meu trabalho, e esse meu amigo iraniano tinha toda uma agenda de despedidas e burocracias antes de deixar o país, depois de uma história de sete anos. Foi pelas noites que fiquei com eles para jantar, querendo inteirar-me de como havia sido o seu dia, para saber as impressões dela sobre a cidade e perguntar sobre os planos para o dia seguinte, para providenciar as medidas de segurança – lógico. Em um desses dias, consegui levá-los à Zona Sul, já que havia sabido de um protesto violento montado no Centro. “Tudo bem,” respondeu, “vou levar ela de qualquer forma para conhecer o Jardim Botânico.”

“Vão como?” indaguei. Ele já sabia que não admitia que ele levasse sua irmã para andar de ônibus no Rio de Janeiro, tal foi a minha preocupação. Imaginei as piores hipóteses: ônibus incendiados, saqueados, ele machucado e ela sem falar português nem inglês no meio da rua, do outro lado do mundo e sem o conhecimento dos pais! Meu Deus! Not on my watch, pensei na minha língua, durante o meu turno não!

Esse meu amigo já tinha se rendido aos meus cuidados e me deixou agendar o transporte adequado para eles. Amigos em comum talvez possam ter achado que eu estava exagerando na prudência. Talvez sim. Mas desconheciam o contexto da família e cultura do nosso amigo, coisas que ele ou expressava melhor para mim em inglês do que português ou coisas que ele nem precisava manifestar com palavras, desde que no olhar ele tinha percebido minha sensatez, devido aos parentes meus que são do país dele e também uma grande experiência na Índia, numa cultura com semelhanças com a dele.

Os dias seguintes ao longo da semana me fizeram relaxar da preocupação com os irmãos hóspedes e eles ficaram tão à vontade que a iraniana não fugiu da mesa quando o irmão se levantou, ficou sentada na minha frente. Percebi que o inglês dela era muito limitado, então utilizei meus recursos de professor para ajudá-la a soltar o que tinha, mas ela logo deu um grito de socorro para o irmão bancar o tradutor. Ele a ignorou, para forçá-la a tentar ou porque esse meu amigo – um Einstein de cabelo grande, negro e arrepiado, com seus óculos enormes – estava longe, perdido naqueles pensamentos, calculando o tamanho do universo. Tanto faz: a falta de interferência por parte do irmão fez com que ela conseguisse soltar as palavras, comprovando que ela entendia minha pergunta. Expressou que achou muita coisa parecida com o Irã. Queria saber o que exatamente, mas ela não conseguiu acrescentar. As perguntas abertas sempre são vagas e difíceis, então fechei as perguntas para ela poder focar melhor: “Me diz a coisa que você mais gostou e uma que você menos gostou daqui.” Os superlativos em inglês a confundiam, então fui ainda mais simples: “Me diz uma coisa que você gostou e uma coisa que você não gostou.”

“Uma coisa que não gostei?” Entendeu muito bem a pergunta, mas ficou envergonhada e não queria responder.

Levantei a voz para o irmão dela no outro quarto: “Teus bons costumes asiáticos não estão permitindo que ela critique a casa dos outros”. O irmão dela concordou com uma risada. Mas, ela conseguiu deixar claro que não havia nada que desagradasse.

“Você se sente cômoda na rua com o cabelo descoberto?”

“Sim!”

“Mas você gosta de ficar com o cabelo destapado?”

“Sim! Eu gosto!”

“Então, me diz, o que você mais gostou daqui?”

Ficou olhando para as palavras no ar, acima da mesa entre nós. Pausou para arrumar a resposta: “Pessoas alegres. São alegres. Sorrisos. Simpáticos. Eu gosto disso. Meu país não feliz.”

“É… verdade! Muito alegres!” respondi, até demais pro meu gosto, pensei, com uma ironia nativa que aprendi aqui mesmo, fazendo-me rir.

Nunca tinha pensado nisso, mas com certeza que foi essa alegria toda que me encantou também quando cheguei aqui muitos anos atrás. Mas eu queria saber quais dos cinco sentidos dela foi ativado primeiro ao começar a observar um novo mundo. Ainda lembro uma das minhas observações, minha prioridade sempre sendo gastronômica: passando por restaurantes pelas ruas de Copacabana ou Ipanema, abertos para a rua de uma maneira que não são mais, reparei os vários clientes sentados a comer bifes enormes com nada menos do que três pilhas de branco – arroz, batata e farofa. Essa opção culinária era ainda mais confusa para mim porque eu estava enxergando o mar de tão perto que qualquer rua transversal desembocava nele. Ninguém comia peixe.

O bom de receber os outros é a oportunidade de ver tudo de novo com os olhos dos outros. Eu queria muito saber o que ela notava e percebia. Andando pela rua nos primeiros dias no antigo Centro residencial da cidade, será que reparou como os porteiros improvisaram uma barragem de areia para encaminhar o esgoto brotando no meio da calçada? Percebeu que era francês a língua que falava o casal jovem que acabou de passar com caras ingênuas? Que ela achou da mulher, moradora de rua, berrando de raiva a uma pessoa que não estava na frente dela? O jovem de bicicleta, sem camisa e cantando alto para a morte do jeito que ele ia entre os ônibus? Os cachorros lindinhos que não abandonaria nunca as pessoas que foram abandonadas, dormindo embaixo dos toldos na calçada? Ela sabia que era a Bíblia que estava lendo o jovem rústico e parrudo, sentado na mesa da lanchonete da esquina? A tarefa do senhor idoso de chapéu, puxando o carrinho da feira com uma lentidão para durar o dia inteiro? Que as mulheres que passaram agora com pouca roupa colada no corpo não eram exatamente mulheres? Que era cedo demais para os policiais almoçarem num boteco vazio? A grandeza das árvores antigas, cheias de pássaros? O que estava vendendo aquele senhor de idade, uma figura cheia de cordões de prata, sentado numa mesinha na calçada com blocos grandes de papel riscados? Por que eu troquei de caminho, guiando meus amigos pelos ombros, de repente, ao dobrar outra esquina? Errei ou tinha visto alguma coisa que era melhor evitar?

Infelizmente ela não tinha como expressar o que ela notava. De qualquer forma, vi que ela estava muito bem no Rio e havia sido uma conquista, mais uma vez, dessa felicidade do Brasil de sei-lá-donde-vem. Aquele cliché e suas teorias todas. A minha própria é de que essa alegria está intimamente ligada a uma sabedoria cuja medida é difícil de acertar: a de não se levar muito a sério. Não conheço o país dela, mas imagino que não é um lugar alegre, como ela tinha dito; deve ser um país que se leva muito a sério, sério demais, como nem o meu é. São contextos nos quais os indivíduos não conseguem fluir e acabam tocando terror, sempre à espera de uma oportunidade deliciosa de impor limites aos outros. Terras seríssimas onde pessoas – como nem meu irmão militar – se dispõem a fazer o sacrifício máximo de defender [os interesses de] os EUA. Talvez por isso Irã e EUA não se biquem, no fundo são muito parecidos. Acredito que ela viu o que eu tinha visto muitos anos atrás quando cheguei: aquela espontaneidade, os olhares retos e à vontade, os sorrisos sinceros, até muitas indiferenças simpáticas por não serem pessoais, nem sempre levadas a sério.

Obviamente, falta de seriedade é um grande problema também: a sociedade fica sem estrutura e os indivíduos ficam soltos, improvisando, até aquilo que não devem, e se encostando uns nos outros, muito além dos limites.

Em um mundo perfeito, a dosagem de seriedade seria acertada, mas sem esperanças de ver aquilo nesta minha vida e precisando escolher entre os extremos, fiz um comentário infeliz para explicar aquilo aos meus irmãos na minha última visita a Chicago: “Eu prefiro viver num país feliz!” Um dos mais patrióticos ouviu claramente o não dito, não dá para eu morar nos EUA porque não é um país feliz, e, por causa disso, ele me questionou: “Ué? E esse pais não é feliz? É um país muito feliz, sim!”

As opiniões são perigosas porque elas facilmente agridem sem querer. Ao final, eu e o meu irmão nos amamos e esse meu irmão estava, na verdade, procurando razões para eu voltar a morar em Chicago. Sem querer, tocou numa ferida, o fato que nunca me visitou no Brasil. Nunca. Muitos poderiam ter me contrariado com muitos argumentos, mas ele – de todos os meus muitos irmãos – naquele contexto, era a pessoa errada. Bebendo num bar lindo, naquela cidade linda, naquela rua vazia, tediosamente perfeita se não fosse pela neve lá fora, eu estava completamente relaxado para mandar uma verdade apontada: “Feliz? Meu irmão, você não tem nem noção do que é morar num país feliz. Desculpa, tá? Se quiser, vem comigo que te mostro o que é ‘feliz’. Terminei rindo para descontrair, mas também imaginando se fossem certos amigos brasileiros para apreciar o sarcasmo naquilo que mandei ‘na lata’. Como ele ia entender a diferença entre um povo que tem tudo, mas não tem nada; e outro que não tem nada, mas tem tudo?

Muito doido isso!

Eu mesmo não sei se entendo, então passou batido pelo meu irmão, daqueles conterrâneos meus que nunca se interessaram em conhecer outro país.

Acredito que, através dos anos, os meus irmãos repararam numa certa mudança em mim. Embora ainda seja aquele irmão reconhecido – talvez um diplomata, um pouco tímido, calmo e contente – mas agora tem um outro ali dentro, um imprevisível, um tanto passional, capaz de coisas hilárias e uma irritação traiçoeira. Uma coisa que sempre falei do brasileiro: na hora da irritação faz muito pior do que ofender, começa a fazer um sincericídio. Quando quer ferir mesmo, deixa de lado o xingamento, quietinho, e começa a lançar verdades, por inconvenientes e horrendas que sejam. É infinitesimalmente pior de encarar que insultos e só tenho testemunhado isso no Brasil. Então aquele irmão, daquelas concorrências fraternais infindáveis, os opostos que chegaram ao mundo só para irritar um ao outro – ele nasceu mal-humorado e eu rindo – já reconhecia o tom estrangeiro e não insistiu no assunto, sabendo que eu toparia desdobrar o assunto, querendo saber por que ele não quer conhecer outro país, outra cultura. Ninguém ia ficar ileso, porque aquela agressão minha ia liberá-lo para apontar os meus erros também – e não são poucos.

Talvez os íntimos já saibam da felicidade do que eu falo ao elogiar o Brasil, daquele bem espiritual, a satisfação do brasileiro de fazer o outro feliz. Mas ainda tem aquela alegria folclórica com que eu tanto gostaria de torturar aquele meu irmão, arrastá-lo, esfregando-o na cara do Samba do Senado até ele se render; com aquela fauna toda do Centro da cidade; uma confluência de tribos que não faz sentido nenhum; todos horrendamente alegres, com aquelas gargalhadas voadoras e dolorosas, dobradas e gritadas; o cheiro do bueiro; aquelas velhinhas, soltando as frangas, se acabando de tanto cantar; os amasso descarados; aquelas personagens caricatas e sinistras; todo mundo boiando em cerveja; aquelas paqueras palhaçadas naquele boteco de madeira petrificada já, um dos mais antigos do Rio de Janeiro.

Daquela muvuca, só ia sair vivo esse meu irmão ou aquele mau humor dele, mas os dois não.

Foi exatamente dessa roda de samba que eu lembrei quando o primeiro fim de semana do mês, a Feira do Rio Antigo, coincidiu com a despedida dos iranianos. Ia ser o programa perfeito: perto de casa, podiam comprar os presentes que queriam, almoçar e se divertir no reduto de carioquice, completo com o samba que não podia ficar de fora, lógico.

A iraniana continuava com sua cara simpática, mas mal disfarçava os olhos que absorviam toda a alegria que assistiam desde a esquina da rua. Ao achar o círculo dos meus amigos, bebendo cerveja numa roda em plena rua, apresentei os estrangeiros.

Sempre falei que o Brasil é o único país do mundo que trata os forasteiros melhor do que seus conterrâneos. A roda virou um aconchego para acomodar os iranianos, fazendo e falando de tudo para poder comunicar-se com eles, mas um dos meus íntimos e mais cariocas queria puxar a ficha da situação comigo. Para sintetizar tudo que ele entendeu da história confusa, ele sorria com o copo na mão e outra na barriga de chope: “Então,” se preparou, olhando ao redor, “quer dizer que tu trouxe essa menina,” procurou o leste, “de Teerã,” depois apontou para nossos pés, “pra Rua do Senado?”

Não fui só eu a fazer aquele esforço brusco para não cuspir a cerveja.

Com sarcasmo houve uma risada generalizada antes dele continuar com os comentários sacanas: “Faz isso não, Ricky. Cara, você é cruel. Que barbeiragem tu fez, hein rapaz?”

Os iranianos me pediram para traduzir o comentário que deu na risada, mas não tinha versão em inglês, porque esse meu amigo carioca estava, na verdade, fazendo aquela apologia cômica ao amor e ódio pela própria cidade que foge de toda tradução.

Despistei-os da explicação quando convidei a iraniana para ver a roda de samba de perto, porque, baixinha, ela não conseguia ver os músicos dentro do antigo armazém. Resolvi levá-la dentro do boteco, guiando-a pelos ombros entre as pessoas – que identificaram uma estrangeira que queria ver a roda e alegremente cediam espaço – até chegar na mesa, cercado por músicos e seus instrumentos. Não faltou o altar pra São Jorge. Achei interessante para a iraniana ser justamente uma roda conhecida por ser integrada por mulheres.

De volta à roda dos meus amigos e mais uma cerveja no final do samba que acaba pontualmente às 17hrs, o mesmo amigo sacana perguntou, “Agora, deixa eu adivinhar…você vai levar ela no passinho depois?”

O final de tarde do primeiro sábado do mês, que tem a Feira do Lavradio, sempre acaba no Charme do Rio Antigo, que sempre promete uma galera ainda mais alegre, mais eclética, todos dançando no meio da rua – ou não – o passinho da música black.

Foram muitos beijos de despedida e de boas-vindas à Rua do Senado até a Rezende, mas a turma rumou para outra festa. Reagrupando e me reorganizando entre os amigos, com mais bebidas ao som de batida com um swing, me dei conta que eu tinha perdido a iraniana.

Quando eu a vi, ela estava lá, colando numa das filas discretas, atrás dos mestres, para aprender o passinho. Estava dançando feliz no meio da rua. Parece que não é nada, mas ela estava se apropriando de um direito adquirido que pouco é achado fora da latinoamérica: o de dançar em plena rua. Ótimo, pensei, a vendo experimentar a alegria. Apesar de ser uma festa completamente improvisada e bagunçada, às vezes com mais camelôs do que dançarinos, sempre a achei uma festa popular desprovida de agressão. Mesmo assim, pulei na fila ao lado dela, ajudando-a a mandar um Michael Jackson ‘na moral’.

De volta à casa – depois daquelas manobras minhas para manter a segurança no caminho – fiz o chá preto forte e muito quente, do jeito que eles gostam, também porque eu vi que os irmãos haviam se resfriado um pouquinho na rua invernal carioca. Também servi o queijo fresco, pão, nozes e verduras de costume iraniano. “Então,” perguntei a menina, “foi tudo bem? Gostou das festas?”

A resposta dela foi rápida e repetida. “Muito alegre. Meu país, não alegre.”

Meu também não, pensei, lembrando toda a infelicidade do Trump, mas também lembrando que hão Rios de Janeiro que desconheço.

Olhei para o irmão dela, meu amigo, com o olhar triste por não saber se ele estava encerrando um capítulo ou um livro na vida dele, “Vai ser muito difícil me despedir do Brasil amanhã, Ricky.”

“Fique triste não,” respondi. “Nós decidimos muito pouca coisa nessa vida. O universo chegou para te dar um limite. Tá na hora de cuidar da saúde. Esse limite chega para todos nós uma hora ou outra e sempre é uma coisa boa quando se tem uma chance de revertê-lo como você tem. Vai dar tudo certo. Já sabe que vai ser recebido de braços abertos se voltar para o Brasil. Fala para tua irmã que, – quem sabe? – a visita dela não tenha sido só para te levar de volta, mas também para levar um pouquinho dessa alegria de que ela gostou tanto.”

Não tem nada, absolutamente nada, que indique que as coincidências sejam meramente acasos sem proposta, sem explicação e sem efeito. Observei claramente que o que era uma ocasião trágica para o irmão foi uma grande oportunidade para a irmã, talvez uma coadjuvante como eu na história do outro – ou será só uma questão de perspectiva? Agi nos bastidores para garantir às minhas visitas o conforto e segurança para que eles brilhassem no palco dessas suas histórias. Apesar de não me sentir o protagonista desses romances desdobrados na minha frente, quem sabe foram as visitas que me serviram quando, no mesmo mês, uma visita me fez enxergar a terra natal, enquanto outra me obrigou a contemplar muito daquilo que já foi revelado sobre a terra lar, o Rio de Janeiro, e eu não queria ver?

Mesmo quando se sentir no papel só de observador, nunca pense que seu desempenho coadjuvante não depende de uma dosagem de seriedade. Há muito a ser contemplado ao nosso redor.

Posted by

A native of Chicago, Ricky Toledano has lived in Rio de Janeiro, Brazil for over twenty years as a writer, translator and teacher. [a]multipicity is multi-lingual collection of reflections through the humanities.

5 thoughts on “De Teerã para a Rua do Senado

  1. Lindissimo texto, cheio de contradicoes, mas o que vale e..qual Rio voce quer conhecer, qual Brasil?? No meio de tanta violencia tem igual muita beleza e bondade. Tudo depende da otica que vc ve a vida, seja ela em qualquer lugar. Sempre vivi em Sampa e nunca me deparei com o lado ruim, so via o lado bom dela e assim em todos os lugares que vivi….vc pode ate achar que sou uma louca, que nao vejo a realidade como ela e…mas prefiro ver o outro lado , que muitos nao querem ver, ou reparar..esse seu texto, conforme fui lendo, foi me tocando e me mostrando o qto estou certa. Foi uma honra ter tido esse prazer de estar aqui.

    Liked by 1 person

  2. O brasil é incrível! Infelizmente, as grandes metrópoles tornaram-se muito violentas. Mas nada impede que encontremos belezas incríveis e momentos únicos em todos os locais. Comparando nossos problemas com algumas situações vívidas no Irã e outros países do Oriente Médio (cultura, economia, religião etc.), o Brasil deve ser um paraíso. Ótimo texto, aliás!

    Liked by 1 person

Leave a comment