Teorias de Botequim

por Ricky Toledano

“Eu me lembro do helicóptero com drogas, Ricky, mas não de um avião. Deixa de exagerar, pô!” disse o meu amigo, aquele carioca grande, com vozeirão, que não sabe conversar, só sabe gritar, ao chegarmos à mesa do botequim que frequentávamos numa época em que tínhamos mais cabelo, bebíamos muito mais e em que ainda não havíamos nos separado para tomar caminhos — e opiniões—muito diferentes.

“Talvez você não tenha se inteirado do caso porque a matéria foi rapidamente ‘desconversada’ pela própria imprensa,” devolvi, segurando a cadeira para sentar-me na mesa à beira da calçada, iluminada apenas pela purpurina da luz refletida nos vestígios do dia, na cidade e no céu de verão. Na mesma calçada, uma mulher lindíssima, com uma roupa cor de pêssego, se apressava, desengonçada, se equilibrando como podia no salto alto entre as muitas pessoas que atravessavam a rua como dardos no final do dia. Uma amêndoa caiu na calçada e assustou uma turma de pombos. Um mendigo empurrava um carrinho com um cachorro. Casais de mãos dadas andavam devagar entre pocinhas de água que refletiam os últimos raios de luz. O asfalto da rua estava generosamente bordado por pérolas de vidro, como lantejoulas, depois de uma batida de carro.

 “Foi um avião que partiu da fazenda de um dos homens mais poderosos deste país,” continuei, ao sentar-me à mesa. “Que eu saiba, o caso não foi investigado, como eu apostaria que o caso dos 39kg de cocaína no avião presidencial para a Espanha tampouco será apurado como deveria. Como também não imagino que o caso dos 125 milhões em ouro e joias roubados no aeroporto de Guarulhos vá ser muito explorado. Vi até uns esforços para culpar um ou outro, mas pouco convincentes, porque ninguém faz nada daquilo sozinho. Eu presto muita atenção nessas histórias mal contadas… Então, meu amigo, vão se somando mais mistérios à coleção, para não falar dos laços de família do nosso líder lá—extremamente suspeitos—nem daquela, digamos, preguiça para investigá-las.”

“As ‘rachadinhas’, você diz?”, me perguntou, antes de fazer o sinal para o garçom trazer dois chopes.

“Elas mesmas, só que envolvem pessoas, digamos, esquisitas. Parece que estão ligadas a crimes mais sombrios,” respondi da melhor forma que podia, pisando em ovos, para evitar as aversões desse meu amigo. É difícil driblar e não dizer as coisas com clareza numa língua que não é a minha.

Ele não conseguiu ler nas minhas confusas entrelinhas: “Não entendi.”

A mesa foi coberta de papel e dois chopes chegaram para brindar o raro reencontro. Ele adora frequentar aquele botequim parado no passado, ao qual eu já não faço questão de ir. Nos vinte anos de amizade, em pouquíssimas ocasiões consegui arrastá-lo para conhecer o novo, o que sempre procuro; entretanto, um convite para a nostalgia é sempre bem recebido por ele, uma pessoa que aprecia os velhos conhecidos. O que ele  queria mesmo era aquela combinação carioca das antigas, aquele chope e pizza  — da época em que não comentávamos nada de política — e lembrar dos tempos em que tinha menos preocupações, era solteiro, não tinha duas filhas e uma empresa pequena que hoje o ocupam além do próprio fôlego.

“Além dos laranjas, temos agora uns fantasmas,” tentei de novo falar sem pronunciar o nome da vereadora morta, já que esse meu amigo é extremamente avesso a ela, sem razão nenhuma, talvez da mesma maneira pela qual sou solidário a ela, sem sequer tê-la conhecido antes do seu assassinato brutal. Só que há uma grande e curiosa diferença entre nossos sentimentos: o simples nome dessa política morta provoca o desgosto dele, enquanto a mesma invocação não incita grande emoção em mim. E confesso que eu bem queria investigar, com calma e na hora oportuna, essa reação emocional dele, que a meu ver só podia ser uma manifestação de preconceito, coisa que todos nós temos — uns mais do que outros — e que inevitavelmente se impõe ao tomarmos decisões, por mais inocentes que sejam, nos momentos mais fugazes. Ele surge até mesmo ao andar na calçada da cidade grande, por exemplo, um lugar que requer julgamentos rápidos para situações e sujeitos desconhecidos ao nosso redor. Como a maioria dessas nossas escolhas são feitas sem conhecimento direto, caem, então, no âmbito da confusão, um campo bem aberto ao preconceito, onde fica mais fácil encaixotar muitas conclusões juntas, baseadas numa experiência passada — própria ou alheia — parecida. Às vezes nem tempo se tem para decidir entre afastar-se de uma criatura ou cativá-la. Vai-se pela intuição e pelo “não-se-sabe-porque” em vez de pela razão. E ainda bem: ninguém se casa e tem filhos com base no raciocínio.  Ama-se e não se sabe por que, mas odiar? É melhor saber o porquê.

“Ricky, 73% dos inquéritos de homicídios ainda estão em andamento no Rio de Janeiro!” argumentou meu amigo, já armado.

“Não foi um homicídio, cara. Foi um assassinato,” respondi secamente.

“Qual é a diferença, pô?!”

Tive que pensar um instante para a ficha cair e ver que o meu raciocínio tinha sido em inglês: “Perdão… é que em inglês um assassination não deixa de ser um homicídio, enquanto um homicídio não é necessariamente um assassination.” Refleti que sequer teria essa discussão sobre a morte dela, a vereadora, na língua inglesa.

O inglês desse meu amigo sempre me surpreendeu. Ele é fluente, daquelas pessoas com um talento nato para aprender línguas, e ele adora inglês, tanto que a sutileza de vocabulário o desarmou um pouco do papo político, e ele sorriu pela curiosidade de ter aprendido algo.

Pena que não era bem uma sutileza de idioma que eu queria revelar.

“É um homicídio político, então?” indagou, no intuito de confirmar o próprio entendimento.

“Isso! E normalmente tem dois culpados, o assassin, o matador profissional, e quem o contratou. É matar para silenciar alguém ou tirar uma pedra no caminho de um projeto de poder… e há algo muito podre no reino da Dinamarca,” brinquei, antes de tomar um gole do chope.

“Dinamarca?”

“Cara, já pensou que horrível seria se o teu pai morresse envenenado e logo depois a tua mãe, viúva, se casasse com o teu tio, irmão dele?”

Ele me olhou com cara de espanto.

“Coisa horrenda, né?” continuei, “É tão absurdo que você não teria sequer as dúvidas óbvias: ‘Não, não! Impossível! Não pode ser!’, encarei-o, com minha maneira própria de teatralizar tudo, fazendo-o rir.  “Pois é… só que é por isso que existem, sim, os fantasmas. De fato, são extremamente poderosos, porque não somem até que sua morte seja elucidada ou qualquer memória deles seja aniquilada.  Ficam na sala, inconvenientes, apontando para o terrível óbvio que nos recusamos a enxergar—assim como Hamlet descobriu, logo no primeiro ato da peça, quando o fantasma do pai aparece.”

“Não conheço bem a história, não.”

“Logo no início da peça, o castelo é assombrado pelo fantasma do rei da Dinamarca, recém falecido, até ele aparecer para o Hamlet. A aparição manda o recado de que foi assassinated, sim, como Hamlet e todo mundo logicamente já suspeitava, mas não queria aceitar. Na verdade, os fantasmas vêm do nosso subconsciente, um simples fruto da sujeira que cada um de nós leva no próprio interior, testando nossas dúvidas, revelando nossas mentiras e preconceitos.”

Ele me ouvia bem atentamente, mas pediu licença para chamar o garçom.  A pizza era a de sempre, metade calabresa para ele. Acomodava e às vezes acompanhava o meu vegetarianismo, sem neuras, mas só não compartilhava do meu gosto pela Índia. Nunca entendeu por que eu sumia todos os anos para ir a Índia, mas sempre gostava de encontrar comigo depois da viagem, no botequim, para eu lhe contar da última aventura. Ele sempre teve o sonho de viajar comigo por algum dos meus muitos cantos, divididos entre família e amigos nos EUA, México e Europa. A viagem nunca se realizou, mas ele acabou levando a família para a Disney, duas vezes, e quando as filhas ficaram maiores foram a Nova York. Lembro-me da cara dele na mesma mesa do botequim quando voltou daquela viagem, fascinado. A sua cidade é como Nova York? me perguntou, logo ao sentar-nos. Respondi como sempre respondo a essa pergunta — que Chicago é menor e mais bonita. Vi que ele pegou o gosto daquilo, os EUA, e confesso que não o tenho. Tenho viajado muito mais pela Índia do que por qualquer outro lugar do mundo. Enfim, gosto não se discute. Nem é preciso ter o mesmo gosto para as pessoas serem amigas.

 “Mas quem tiver um compromisso com a verdade,” continuei, “vai se limpando dessa sujeira lá no fundo e jamais temerá um fantasma. Quem não tiver compromisso com a verdade, fará de tudo para apagá-lo. Só que qualquer tentativa de apagar um fantasma só cria outros — como vimos com mais uma morte, de um policial procuradíssimo, uma pessoa que podia ter esclarecido MUITA coisa sobre o assassinato da vereadora, e o motorista dela, e agora não pode mais.”

¡Yo no creo en las brujas, pero las hay, las hay!” interrompeu o engraçado.

Pues yo tampoco, pero las hay, las hay,” respondi, “por isso fica claro para mim que a certos indivíduos muito lhes interessa que estes assassinations continuem sendo apenas homicídios entre os muitos esquecidos do Brasil.”

“Só que você errou—como nem esse teu time erra—porque existe na verdade outro fantasma.”

Eu estava esperando que ele levasse a conversa para o futebol, para me sacanear. Nunca me perdoou pela minha escolha do time opositor. Filho da…

“Qual?” perguntei.

“E o caso do Celso Daniel, então, Ricky?”

Minha cautela de não meter nomes na conversa não foi recíproca e a lógica da indagação dele foi infeliz. Tinha visto na mesma semana do nosso chope os memes, incessantes e “lacrantes”, que ele tinha postado na rede social sobre o caso do Celso Daniel, para refutar o grande barulho contra o descaso da Marielle Franco. Acredito que ele, como muitas pessoas que compartilharam aquilo, não sabem que o inquérito policial do assassinato do Celso Daniel foi concluído e encerrado há muitos anos — embora de forma pouco convincente para muitos, inclusive eu. Na verdade, a pergunta dele nem dúvida foi: servia só para rebater, de uma maneira futebolística, com lógica de torcida — distorcida — de igualar supostos pênaltis, e então legitimar uma investigação, em curso, descaradamente atrapalhada, bagunçada, parada, atolada, desmentida e contraditória.

A minha triagem própria do que aparece no painel do mundo sempre se limita a uma leitura literária: por que os mais altos poderes deste país não querem que um crime seja elucidado? Eu diria que provavelmente pela mesma razão que o rei da Dinamarca não queria que a verdade sobre a morte do seu irmão fosse revelada. Acredito que o meu amigo também sabia disso, porque ele certamente estava vendo o mesmo fantasma que eu. Ela estava sentada ao nosso lado na mesa, entre nós, como se estivesse na cabeceira, com aquele sorriso que encanta sem saber o porquê. Tomava um chope conosco, mas o meu amigo sequer conseguia olhar para ela—exatamente como as autoridades deste país.

O Rio de Janeiro tem muitas tribos e fico feliz de haver conhecido as mais diversas. De modo geral, no Brasil o gringo fica isento de casta, e como forasteiro muitas vezes é mais bem recebido do que o produto nacional, é fácil abrir mão dos próprios preconceitos e dos alheios para infiltrar-se na diversidade ao redor. Viro-me muito bem do Leblon até Madureira, e talvez por isso me sinta mais à vontade e tenha escolhido morar no meio da gema, na parte central da cidade, o lugar que realmente acolhe todas as tribos.

Foi com muita alegria que descobri que, independente da tribo, o que une todos os cariocas é o senso de humor. São muito engraçados. Foi do pai de um amigo, um cômico nato, de quem ouvi pela primeira vez esse humor que faz piada do “viralatismo”. “FBI, Scotland Yard e a polícia brasileira estavam numa competição para escolher a melhor polícia do mundo”, começou o patriarca, com aquela piada cliché: “Soltaram um coelho na floresta para ver quem o achava mais rápido.” Quando chegou a parte em que os PMs foram os mais velozes — voltando do mato em apenas três minutos, com um porco-espinho todo quebrado, confessando ser um coelho — eu fiquei chocado, e depois caí na gargalhada. Até então, nunca tinha ouvido esse tipo de humor que ri da própria desgraça. Fui criado num país em cujos filmes os bandidos sempre vão para cadeia no final e a bandeira nacional sempre tremula depois de ter salvado o mundo. Americano realmente acha que é o melhor e não se despreza nunca.  Aquela piada me impressionou. Foi engraçadíssima e fico maravilhado até hoje de ver como esse humor exige a enorme sabedoria de não se levar tão a sério. O contrário disso seria o meu país de nascimento, uma nação bairrista que se leva muito a sério — até demais para o meu gosto e o de muitas nações atrapalhadas por ele. Enquanto também não deixa de ser complicada essa coisa brasileira de não se levar muito a sério, há uma semente de sabedoria naquilo que eu ainda acho vai beneficiar o mundo.

Não se esqueça disso. O problema é dosá-lo na hora certa. Há muito tempo o meu país de nascimento precisa tomar um belo gole desse elixir do autoconhecimento e relaxar; ao contrário, eu acho que o Brasil de hoje precisa parar de bebê-lo e agir, para não descarrilhar.

O pai do meu amigo me liga até hoje só para contar piada e incitar minha gargalhada escandalosa, igual à dele, das antigas, aquela de boca aberta, rugindo. Sou eternamente grato a essa família que me acolheu muito anos atrás, e assim abriu um mundo novo para mim. Com eles me infiltrei ainda mais na cultura, passando a frequentar um bairro não-turístico do Rio de Janeiro, porém considerado bom e folclórico por ser tradicional. Quantas vezes desfrutei da mesa exageradamente farta da família grande e acolhedora, carioca, libanesa-italiana. Não só compartilhei muitos momentos bons com eles, mas aprendi muita, muita coisa com essa família de comerciantes e empresários sobre como funciona este Rio de Janeiro misterioso.  Contaram-me sobre as muitas experiências macambúzias e nada engraçadas da vida de comerciante no Rio de Janeiro. Compreendi perfeitamente bem por que desconfiam e têm tanta raiva de um estado que chamam de “parasita”, que nunca demora para recolher — oficialmente ou não — cada vez mais um pouco do fruto da lavoura deles. Reparei que todo, absolutamente todo, contato deles com o Estado é desagradável, ao longo da sequência de autoridades fiscais, trabalhistas, sanitárias, policiais, municipais, ambientais, regulamentares, dos mais diversos poderes. Sentem-se atrapalhados e numa batalha constante contra as dificuldades criadas para facilitar os outros — não para os contribuintes e trabalhadores e muito menos para o público, os consumidores.

Embora compreenda a perspectiva do empresariado, eu discordo deles em achar que o Estado por si seja ruim. Mesmo assim, fiquei na minha quando vi a posição política do meu amigo e a família virar à direita e aderir ao governo atual, que afiança um novo Estado contra a corrupção, entre muitas outras promessas esdrúxulas—palpites ideológicos que na verdade não lhes interessam. Como empresários, miram tão fixamente nos problemas graves da economia, que fazem vista grossa para as palavras mais conflagradas dos governantes, como muitas pessoas que possuem negócios, que acham que as palavras são menos importantes que os números. Foi assim que eu entendi que a bizarrice das palavras acirradas pronunciadas pelo regime atual será ignorada pela burguesia à medida que os números melhorarem — simplesmente porque nada melhora se o país não sair do buraco econômico. 

E eles têm toda razão no que se tange à importância dos números. Contudo, eu acho que Shakespeare e a história do mundo me apoiam ao dizer que não se deve ignorar as palavras. São poderosas e perigosas, especialmente quando vêm das regiões mais escondidas, as preconceituosas, que saem do fundo de nós mesmos—e podem afetar severamente os números.

A partir do momento que este não-conhecimento que é o preconceito tem permissão para criar asas, para tomar a forma de orgulho, de ignorância, para criar um inimigo, as palavras de ódio inevitavelmente voam, buscando ganhar alguma coisa ao libertar uma tribo para ferir outras.

Repito: ganhar alguma coisa.

Queria muito explicar como funciona essa visão da mente a respeito desta pré-conclusão, o julgamento preguiçoso e sem conhecimento sobre um determinado grupo, que chamamos de preconceito. Considerando que a família tinha largado a casa que amava para morar em um bairro nobre da zona sul (lugar que nunca sequer haviam feito questão de morar nem frequentar, apesar de não lhes faltar recursos), por questão de segurança, quando um primo querido foi baleado na porta da casa por outro tipo de “parasitas” (uns marrentos que também chegaram para pegar o fruto da lavoura deles), não era mesmo lugar nem hora de apresentar uma visão contrária, para afrouxar o lacre que tinha colocado — trânsito em julgado — sobre castas inteiras que habitam esta cidade.  Foi horrível o que aconteceu e a família ficou com uma sequela do crime. Ainda não era o momento de ajudar-lhes a testar suas conclusões e optei pela solidariedade. A lógica do raciocínio jamais vencerá a da emoção. Ponto.  Há de se ter paciência para esperar a maré baixar e levar a emoção até a distância suficiente para enxergar e olhar ao redor. E quem sabe se será hoje? 

Eu tenho certeza que o garçom que serviu a pizza estava prestando muita atenção no porquê de não abdicar do caso da Marielle em favor ao do Celso Daniel, o qual ocorrera a quase vinte anos antes, mesmo se tratando de um assassination. Depois de tantos memes “lacrantes”, porém infelizes, que meu amigo não parou de postar na rede social naquela semana, eu tinha que desarmá-lo com muito jeitinho. Além do mais, não queria estragar uma amizade nem uma teoria de botequim por uma discussão sobre um monte de pênaltis de jogos antigos que jamais seriam corrigidos, quando estava rolando um jogo ao vivo que precisava muito ser consertado. Com o Celso devidamente tirado de campo (onde na verdade nunca tinha estado!), desenhei com a aguinha do copo de chope no papel da mesa um mapa das pastas abertas, onde incluí as muitas notícias sobre a região mais misteriosa do Brasil, a Amazônia: “São garimpeiros pobres que botam maquinaria pesada e cara no meio do mato? Como é que toneladas de madeira ilegal chegam aos portos da Europa e América do Norte? Os índios mortos e mutilados, boiando na ribeira? Não serão crimes? Só vejo um ministro atormentado por fantasmas.”

Desenhei um risco, atravessando o país, do Norte da mesa de volta para nós no Sul, para me corrigir: “Na verdade, não sei se o Brasil já não tem uma região mais misteriosa que a Amazônia: e os ataques violentos aos terreiros de matriz africana na Baixada? Os milicianos aqui do Rio de Janeiro que agora diversificaram para petróleo, narcotráfico, areia, construção, armas, um tal Escritório do Crime e um assessor de senador que a Justiça não consegue notificar…”

“I see dead people!”, meu amigo imitou a frase ‘-Vejo gente morta’ do filme famoso. Quase engasguei com a cerveja de tanto rir do nosso humor mórbido.

“Então! Cara, estão acumulando os fantasmas e até contratos fantasmagóricos: aquele contrato de energia com o Paraguai foi uma grande surpresa para mim e já deixou de ser notícia.”

“Que contrato com o Paraguai?”

“Pois é!”

 Evitei ao máximo usar de sarcasmo, debochando do desconhecimento do meu amigo sobre como o presidente do Paraguai quase caiu, graças à saída, rápida e à francesa, do governo brasileiro da negociação— porque ninguém será iluminado através do insulto; só se deve ensinar com carinho e o contrário será categoricamente rejeitado, apesar de toda e qualquer lógica. Deveria ter evitado o papo político, como sempre havia evitado falar de futebol – já que nós representamos os opostos em todos os campos cariocas. Nosso antagonismo sempre foi engraçado, mas os tempos ultimamente têm sido sombrios numa cidade cheia de tartarugas nas árvores, e não dá para desconversar. Já não somos os mesmos jovens tomando cerveja na praia, medindo palavra nenhuma e mal pensando no amanhã. Então, apesar da minha cautela deixei vazar algum sentimento naquele meu Pois é!

Fui bombardeado pelos fatos prediletos dele sobre os vigaristas do passado político recente, e também do meu próprio país, que ele idolatra: como tudo funciona lá, como fazer negócio lá não é crime, como filhos podem andar sem medo, como as cidades são mais seguras, limpas, etc. Contornei aquilo por concordar completamente: sim, verdade, aquela prostituição toda do governo passado dos dois lados do balcão sempre havia sido uma metástase; sim, acho perfeitamente plausível que um outro primo dele nos EUA, ilegal, tenha comprado casa e carro apenas aparando gramados. Que bom. Não ia entrar no mérito daquilo que servia como tentativa de desviar o foco dos bodes que atualmente estavam na sala e equiparar errados para se fazer um certo. Tampouco queria assustá-lo com o que espera aquele primo, lá na frente, se o universo não conspirar a favor dele. É assombroso o risco de ser arruinado, junto com milhões de americanos, num ciclo vicioso de crédito no qual não se tem direito de adoecer ou ter má sorte de forma alguma, num país que não chega nem perto daquela justiça toda que aparece na televisão. Eu sei… parece bonitinho aquele país, mas debaixo daquele verniz brilhante não há muita madeira para se apoiar, não. Foi todo carcomido!  Encosta só para ver como ele afunda de tão oco, exatamente como um pequeno micróbio neste momento está revelando.

 Já não existem os EUA dos anos pós-guerra, quando o meu pai, imigrante do México, podia sustentar um família grande em uma casa espaçosa com seu emprego de instalador de ar-condicionado nos arranha-céus de Chicago, e depois abrir a própria firma de arte e desenho; da mesma maneira que já não existe o Brasil pós-guerra dos avós do meu amigo, refugiados vindos de uma Itália faminta e do Império Otomano em colapso. Nossos pais e avós foram apoiados por Estados que os receberam de braços abertos, oferecendo ensino, treinamento, hospitais, infraestrutura, até crédito. Aliás, foram privilegiados pelo Estado, muitas vezes em detrimento de outros povos que já se encontravam nesses países, ou que foram levados à força para a “terra nova” onde chegavam os nossos antepassados imigrantes. Nunca esqueçam: apenas seis anos antes de eu nascer, havia muitos lugares nos EUA onde era permitido por lei discriminar o negro. E reverter meras leis erradas e fazer outras não garante justiça, tampouco zera tabela nenhuma — muito menos em lugares onde tem ‘lei que não pega’.

Entendo por que o meu pai e os avós do meu amigo não tinham paciência nenhuma com a “choradeira” de certos grupos e “gente que não trabalha”, que só queriam ganhar sem esforço. Sim, os trambiqueiros existem. E, sim, os nossos pais conseguiram construir vidas admiráveis através de muito suor. Deve-se analisar, então, cada pessoa como se fosse um balanço patrimonial, onde se coloca todos os méritos na coluna de ativos e os deméritos na coluna de passivos, para pesar quem merece receber o fruto do trabalho?

Mas em que coluna se deve colocar os “direitos adquiridos” e outros privilégios recebidos do universo? Quem é o responsável por fazer essa conta? E a regra contábil vai servir para todos?

Por isso, também desenhei com o suor do copo no papel da mesa esse balanço patrimonial, para facilitar o entendimento de um empresário, embora essa lógica de conta não se aplique somente aos businessmen. Expliquei como todo mundo faz este cálculo amassado e todo torto, com investimentos individuais muito fartos — como se a fonte fosse exclusivamente própria. Enquanto na outra coluna constam deméritos mixurucas, mal reconhecidos.  Pior, ao julgarmos o outro, o peso da balança se inverte, porque sempre somos melhores para reconhecer os deméritos dos outros e não os próprios. A pessoa ignorante não sabe fazer cálculos ou finge que sua própria conta está sempre correta. A inteligente enxergará o desequilíbrio e fará o melhor possível para contabilizar de forma justa. O sábio entende que essa conta é feita noutro lugar.

“Que lugar?” me perguntou, com sorriso descrente.

“Índia!” respondi, cruzando os braços e virando o olhar para a rua.

Lá fora, na calçada, passou uma turminha de rapazes, jovens negros sem camisa e sem chinelos. Vi como os pedestres se afastaram deles, indo para o outro lado da rua e procurando mais iluminação numa cidade escura. Questionei-me se seria certo eu fazer a mesma coisa se estivesse na calçada naquele momento.

Seria a hora de cutucar o preconceito? me indaguei. O meu amigo despreza a Índia sem conhecê-la. Acha que é um país pobre e ignorante, mas também acredito que ali estava escondida uma ponta de inveja de mim. Ele nem sabe que daquela cultura vem uma fonte de riqueza inimaginável, numa sabedoria única e simples: “karmanyevadhikaraste ma phalesu kadacana, ma karmaphalaheturbhurma te sango’stvakarmani”.

“Que pô é essa?” me perguntou, rindo, como se espera de alguém obrigado a entender sânscrito.

“Vamos dizer que é um ditado popular,” respondi. Quer dizer que uma pessoa só tem direito a escolher a ação, jamais o resultado. E nem se atreve a ser a causa do resultado da sua ação, nem tenta fugir por inação.”

Ele cruzou os braços para refletir um pouco e até encostou o indicador no lábio para introjetar um rápido instante de silencio antes de concluir: “Interessante, mas confuso.”

“Mais ou menos”, respondi. “Você não pode escolher as cartas do baralho que você recebe, mas pode escolher o que fazer com elas. É que nosso livre arbítrio é limitado, na verdade. O cardápio deste botequim parece que tem tudo—tudo! Aves, carnes, massas, saladas, tira-gostos, mas — como você bem sabe — nada disso está pronto. Então o verdadeiro cardápio já foi escolhido por nós — e sempre acaba em pizza.”

“Bicho, adoro essa pizza!” exclamou o meu amigo.

“Só você para me fazer gostar dessa pizza com catsup e mostarda!”

“Eu lembro da sua cara a primeira vez que você viu essa roots!” falou com uma risadinha de boca cheia.

“Então, cara, uma pessoa escolhe pizza, mas não o resultado. Se vai ser boa ou ruim, se vem uma outra coisa, se não tem mais pizza, etc. Mas não se pode deixar de comer – esta não é uma possibilidade humana, como não é deixar de respirar, ou decidir que o coração não bata mais. Há leis. Há uma Ordem. Ou seja, aquele ditado faz parte da tradição de explicar como uma pessoa tem de escolher a melhor ação possível enquanto se desapega dos resultados, sejam de sucesso ou fracasso, porque na verdade tais resultados não são da nossa escolha; vêm de um lugar que lugar não é. É toda uma Ordem, cuja lógica é desconhecida por nós, sem obrigação nenhuma de respeitar nossa falácia de meritocracia. Por isso, serve para cultivar uma visão de gratidão. Podemos empregar toda a inteligência e disciplina para sermos saudáveis, mas não podemos decidir não ter câncer ou não contrair coronavirus; vejo você como um excelente pai, com filhas ótimas, mas…”

Na hora, a palavra ‘filhas’ fez com que ele olhasse para o relógio. Dificilmente ele se afasta delas por muito tempo. Eu simplesmente não imagino o que é ter esse apego todo, mas reconheço que deve ser tão grande que provoca medo, o medo mais profundo, aquele que protege as vidas amadas para não perdê-las. Só nos últimos anos voltamos à mesa do botequim como exercício para que ele as soltasse um pouco, já que está muito próximo o momento de deixá-las voar. Eu nunca, nunca imaginei que esse cara ia ser tamanho pai-de-família! Até porque Eu sei o que você fez no verão passado! (naquele, faz muitos anos). Mas tampouco imaginava que ele guardasse emoções fortes de medo e raiva — a primeira é sempre sobre o futuro e a última sempre vem do passado — que toda a bondade dessa pessoa iria se desfazer tanto ao julgar até os fantasmas com muita pressa.

“Mas nem as suas filhas vão necessariamente ser as pessoas que você quer. Olha para o seu sobrinho doido e o meu irmão maluco! São tantas, tantas as coisas que acontecem que não escolhemos. Podemos escolher os amigos, mas não a nossa família. Não pudemos escolher a cor da nossa pele e todas a vantagens e desvantagens que ela carrega.  Os teus avós não escolheram ter a guerra ao redor deles, mas sim embarcar em navios que não afundaram nem antes nem depois dos portos de Napoli e Trípoli. O sucesso deles foi todo deles? O meu pai não me ajudou? O universo não me ajudou a chegar até aqui? Se não tivéssemos os nossos pais, bons, bem sucedidos, o que teria sido da gente? É preciso compreender que tem muita, muita coisa que não está refletida nesse balanço aqui.” Botei um ponto no desenho no papel da mesa com a aguinha do copo.

Pelo olhar de breve faísca, acredito que acertei no alvo. Consegui deixar uma semente na mente dele. Se vai brotar, se o broto vai ser arrancado depois, eu não sei. Mas queria fazer a minha parte em ajudar pelo menos um amigo com um outro olhar nesses tempos dominados pela fábula de meritocracia, com seus silêncios preconceituosos e o barulho das mentiras.

“Você aprende sobre isso na Índia?”

“Entre outras coisas, mas acho que vou lá só pra comer!”

“Ué? Tem pizza com catsup e mostarda lá?

“Eu nunca vi esta barbárie fora do Rio.”

Ou o garçom era daqueles antigos, que não deixam o cliente se servir, ou ele estava gostando do papo. Damos bastante trabalho, já que nós dois somos vorazes na hora da pizza.

Gostaria de ter sabido o que pensava o garçom sobre os fantasmas recentes, mas os garçons não opinam com a facilidade dos taxistas que gosto de interrogar, conforme o costume carioca. Deve ser porque o espaço íntimo do carro proporciona confissões; ao contrário, entendo que o restaurante é público demais para se expor aos ouvidos próximos. Você teria medo daqueles rapazes? perguntaria ao motorista, na boa e com voz curiosa, sincera, feito uma criança, ao apontar um grupo exatamente como aquela turma de meninos negros, descalços e descamisados que havia acabado de passar na rua do botequim. O primeiro assalto a faca que sofri no Rio foi por uma turma parecida no Centro. Como saí ileso, foi fácil contornar o susto com raciocínio, contextualizando o incidente, e com a aceitação que eu não controlo os resultados de ação nenhuma. Às vezes o Universo entrega aquele quarto fruto — o resultado amargo que é o oposto do desejado — porque nem sempre virão os dois doces, o fruto que espero da minha ação e o saboroso mais-do-que-esperado. Até engolimos aquele terceiro, o ácido fruto que ocorre quando recebemos o resultado menos-do-que-esperado, mas aquele quarto é temido, ainda mais ao andar pela rua de uma cidade imprevisível — que às vezes deixa rastros, como o tapete de cacos de vidro que vi na rua ao chegar ao botequim.

Então, não sei dizer se conseguiria não ser levado pela emoção e deixar tal ferida se infectar por um dos ismos ou fobias do mundo se eu presenciasse um primo baleado na porta da minha casa. As emoções são mal dominadas pelos mais disciplinados.

De qualquer forma, não tem como evitar que arquivos de experiencia sejam abertos, pelos quais eu talvez tivesse decidido atravessar para o outro lado da rua, como tinha acabado de ver pessoas fazendo fora do botequim — para fugir de uma situação que identificasse como arriscada.

Avaliando minha observação da rua, reparei como alguns fregueses do botequim também estavam ligados no movimento lá fora, mas meu amigo sequer se deu conta de que o garçom quase havia derramado o azeite da mesa porque estava de olho naqueles meninos que passavam na calçada enquanto nos servia.

Para o alívio de muitos na plateia, os meninos deixaram o palco da rua, sem mexer com ninguém, saindo pelos bastidores que ninguém se interessa em verificar se há ou não uma estrutura para acolhê-los.

“Você viu a rapaziada que passou por aqui?”, perguntei ao meu amigo.

“Não. Onde?” Ele procurou de imediato, se inclinando para ver melhor a rua.

“Não era nada, não, uma turma chegando da praia, provavelmente,” desconversei sobre a cena; contudo, lembrei na hora das conversas com outro grande amigo, com uma história muito diferente daquele sentado à minha frente.

Compartilhei muitas outras mesas com esse outro amigo, nascido e criado numa favela na parte central da cidade, antes dele deixá-la, depois da novela homérica de conseguir passar em um concurso público, de nível superior. Não suportava o Rio de Janeiro; amava, mas não gostava da própria família; e estava doido para a carreira levá-lo para longe daqui, para um dos outros Brasís, onde teria a oportunidade de se transplantar, enchendo seu vaso de terra nova para brotar. Eu entendia bem esse seu desejo; afinal, não era muito diferente do meu, recriar-me em um campo mais fértil. Só acho que ele corria de muitos fantasmas, muitos mais do que eu e o resto do mundo, que procuram o forasteiro. A turma contrária é do amigo do outra lado da mesa, que faz questão de acordar todos os dias no escuro, antes do sol nascer, para levar pessoalmente os pães ao escritório das lojas deles, para fazer o trabalho que nem precisa mais fazer; o apego é tanto que não os abandonaria nem por uma carreira diferente — não pensa em ir para longe, para outro lugar!

Meu amigo ex-favelado explicou muita coisa sobre uma vida desconhecida para mim, inclusive como é andar pelo mundo sempre visto como ameaça, todo o tempo sob olhares de desconfiança e medo por causa da cor da sua pele. A confissão me deixou estupefato, já que nunca tinha imaginado como isso funcionava em detalhes: a necessidade de ele sempre andar bem arrumado, com documentação correta, bem humorado e educado — mesmo quando não quer — por questão de segurança, pronto para desarmar o preconceito que tiver à sua frente. Eu sempre me senti um incógnito na rua, sem provocar expectativas ao redor. Isso me fez pensar no contrário, como seria ter todos meus passos vigiados. Foram detalhes que me passaram batidos e foi doloroso ouvir de um amigo querido tudo o que já sofreu, nas mais inócuas articulações para entrar numa loja, na sala de aula, no escritório onde trabalha e até para namorar. Eram detalhes inimagináveis para mim, até ele contar o que passou na rua, nas mãos da polícia — e o que ele já viu a polícia sofrer — numa cidade que vive uma guerra sanguinária, onde herói, vilão e vítima se juntam em cada indivíduo, apesar dos esforços perniciosos para desfazer essa complexidade, para dividir-nos em times, com apenas um rótulo para cada um.

E cada fantasma.

Por isso, amarrei os detalhes desse amigo num cordão, onde pendurei outros exemplos que havia encontrado na rua, inclusive uma pérola recente e muito perturbadora: a covardia de tentar matar pela segunda vez uma mulher assassinada, ao difamá-la chamando-a de “bandida”. Nitidamente muitas pessoas tinham a necessidade de acreditar que a vereadora morta refletia essa conclusão vil, para mostrar que era merecedora de seu destino. Desmentida essa narrativa espúria, ficou uma outra tão descarada quanto, na qual sua morte precisa muito ser tratada como apenas mais um homicídio não elucidado no Brasil.

Por que?

Se meu outro amigo estivesse na mesa, explicaria melhor do que eu — e não só por sua maestria em desdobrar qualquer assunto. As verdades são tantas que podem até ser entregues por terceiros, mas sinceridades, não. Ele fazia falta na mesa, como os negros — e muitas outras tribos da nossa sociedade — sempre faltavam na mesa na hora de debater e decidir qualquer coisa que lhes afetasse. Com certeza, essa vereadora morta sabia muito bem disso. Por isso, acredito que alguns a consideravam, no mínimo, inconveniente; e agora, o seu fantasma é muito, muito mais.  

Achei que conhecia a história do preconceito, mas ao ouvir as palavras desse grande amigo do morro, descobri que não entendia nada, como não compreendia muita coisa antes de dividir mesas com pessoas — inclusive com o amigo à minha frente e do outro lado da mesa — que trouxeram histórias muito diferentes da minha.

Alcancei apenas um certo entendimento através dos detalhes que me ofereceram. Podem até parecer efêmeros, meros enfeites, ornamentos nas tramas de cada um. O leitor incauto os deixa passar batidos, apenas atento ao enredo, um dos sete, é dito, de que são feitas todas as histórias.

Mas nem Shakespeare e muito menos o grande Escritor de Todos os Destinos deixa fios soltos pelo caminho, e se deixar, é exatamente para você puxá-los para ver até aonde se desnovelam.

Então, não só encontrei um fio solto na toalha da mesa, embaixo do papel já desmanchado dos nossos copos de chope, mas achei outro na desatenção do meu amigo, focado na pizza e não no entorno do botequim. Confirmei que ele não havia visto a rapaziada que tinha passado, nem se ligado em como muitos haviam ficado tensos ao ver o grupo passar. Sorri, antes de perguntar se ele pelo menos havia reparado em outro detalhe: a ‘mulher pêssego’, quase caindo do salto, que havia passado quando nós chegamos.

“Ah! Essa aí eu nunca mais esqueço!”

“Pois é!” lancei, desta vez com uma risada e sem deboche nenhum. Gosto desse amigo exatamente como é, apesar da cegueira dele sobre os outros ao seu redor—ou, talvez, por causa dela.

Também apreendi na Índia que ele, como todos nós, pertence a uma tribo, uma casta. No caso dele, é uma intensamente focada na pizza que tem à sua frente. Contudo, sem essa concentração — a disciplina de família que acaba alimentando o mundo — não teria pizza para ninguém!  Nem para a casta de cabeça, cujo papel é transmitir ensinamentos de geração a geração; nem para a casta de poder, cujos braços organizam a sociedade; nem para a casta do trabalhador, que com a grande força das pernas sustenta todos nós. As quatro são representadas pelo corpo do deus Vishnu — deitado — justamente porque Ele representa o Todo, no qual não existe uma casta em cima da outra, como houvesse uma de mais importância. Precisam funcionar em sintonia, cada uma executando o devido papel.  Ao contrário, a tradição védica descreve o caos que nós vivemos hoje como o da sociedade onde os intelectuais começam a comercializar o conhecimento, cujo valor não se pesa, nem se contabiliza, nem se vende como se fosse mais um produto da casta do meu amigo, representado pelo abdômen de Vishnu, onde o consumo gera toda a energia da vida, um fogo que não é alimentado por ideias, mas pela matéria do mundo. No vácuo dessa confusão, a cabeça, então, é invadida pelos guerreiros, que expulsam o ensinamento de valores para colocar aqueles propícios a um projeto de poder, deixando os braços fortes para organizar a sociedade, regidos pela barriga, que só se interessa pelos órgãos da família e não pelo Tudo.

Pior, os três não se dão conta que não irão a lugar nenhum sem o bem-estar e grande talento das pernas—até que seja tarde demais.

Foi de Vishnu que lembrei quando o meu amigo do morro me contou o detalhe fantástico — de que não há vilões, vítimas e heróis — porque atrás de todos esses papéis está a pessoa essencial, livre de todo papel, que é o próprio Vishnu, o Tudo, cuja lógica é desconhecida por nós, e nem precisa ser para sempre tentar enxergá-lo e responder à pessoa essencial e não a suas ações e palavras.

Tá difícil, viu? Na hora da raiva, então…

Não é para ser fácil. É descrito como o objetivo desta e todas a vidas enxergar essa pessoa essencial que existe em cada um e em si próprio. Por isso fiquei atônito ao ouvir aquelas palavras sábias, que a vida no morro obrigou meu amigo a compreender a complexidade do ser humano: Às vezes nosso herói mora dentro de casa e ele é o vilão do vizinho. Eu sofri uma covardia horrenda que não consigo superar e daí nasce um vilão pior. O herói do vizinho é detestado por mim e é o inimigo, mas ele é amado loucamente pelo filhinho e o cachorro, tão fofinhos. Eu, o ser perfeito ao olhar dos meus fãs, uma pessoa que nem fede nem cheira, passo batido na rua dos outros. Gostamos de uma pessoa, mas não a amamos, mesmo dentro da própria família. Ama, mas não gosta, nem na própria cama! Eu vou dizer que aquele cachorro do vizinho tá errado?

FFTT! Ainda bem que naquele dia estávamos perto da calçada e não no fundo do botequim, porque engasguei de dar risada e cuspi o gole de chope na rua.

Fui para casa rindo naquele dia, não só da graça do meu amigo, mas da ironia de ter ido buscar a mesma sabedoria — de como a pessoa essencial é a mesma em cada um, apesar dos vários e contrários papéis que desempenhamos no mundo — do outro lado do mundo, quando nem precisaria ter saído do lugar.

Deixada a comédia para trás, quase chorei por tantas tragédias que meu amigo presenciou tão jovem. Nunca me esqueço do rio carmesim de sangue que corria na ladeira entre paralelepípedos que eu vi nos olhos dele, contando do dia em que descobriu que não tinha como desmembrar o herói da vítima e do vilão no homem único, caído no chão da rua, diante dos berros de desespero de um menino e um cachorro que não parava de latir.

Algum dia ainda vou agradecer por tanto que ele me ensinou.

E algum dia ainda vou repassar esse conhecimento para o outro lado da mesa, pela gratidão por tudo esse outro também me ensinou, ao observar a lealdade inabalável que ele tem pelos seus protegidos, dos quais tenho a bênção de ser mais um.

No dia em que desapegar do foco e despertar para os detalhes ao redor, estarei de prontidão para ajudá-lo a ler Hamlet, e quem sabe ele ainda puxa um fio solto da minha lista de mistérios, sem medo de encarar o vilão ou um fantasma dentro de um dos armários escuros da própria mente? Nesse dia, será um grande prazer levá-lo a conhecer o novo, próximo, talvez um botequim diferente, sem esse cardápio todo, num bairro desconhecido por ele, para dividir uma mesa e as histórias com os outros Membros do Corpo dos quais ele nunca se separou; ou distante, talvez até a Índia, se for preciso, sem sair da mesa, para descobrir as muitas e grandes histórias que ilustram a razão de um compromisso com a verdade jamais depender dos gostos e aversões de cada um.

Até então, ficarei de prontidão para comer pizza com catsup e mostarda e não o abandonarei.

ओम् तत् सत्

Agradecimentos

Os ‘quatro frutos da ação’ e outros sabedorias da visão védica, no texto, não são da minha autoria. Fazem parte da grande tradição de conhecimento que se chama Vedanta, o ensinamento dos Vedas, pelo qual sou eternamente grato a minha professora, Gloria Arieira.

Não sei o que eu faria sem a ajuda de Liane Sarmento, cujas reflexões e apoio para eu poder escrever em português são sempre valiosos.

imagens por Ricky Toledano

Outras obras em português:

A Maldição de Saraswati

Deixa de ser ridículo, Ricky!

De Teerã para a Rua do Senado

O Peão de Ornamento

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A native of Chicago, Ricky Toledano has lived in Rio de Janeiro, Brazil for over twenty years as a writer, translator and teacher. [a]multipicity is multi-lingual collection of reflections through the humanities.

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