por Ricky Toledano
Originalmente publicado como “The Assassination of João Gordo” por Terrain.org: https://www.terrain.org/2021/nonfiction/the-assassination-of-joao-gordo/
Traduzido por Liane Sarmento Magalhães

Revoltado com a notícia de que João Gordo havia sido brutalmente cortado deste mundo, fui enfático ao afirmar que a árvore amada não tinha sido simplesmente morta: “Ela foi assassinada”. Já podia imaginar o toco no meio da pracinha arenosa, antes mesmo de chegarmos para prestar nossas homenagens na beira da orla abandonada da folclórica ilha de Paquetá.
“Qual é a diferença?” perguntou meu amigo, confuso com a minha colocação, que não fazia muito sentido em português.
Se estivéssemos falando em inglês não teria havido dúvida, mas tive de explicar que o cognato “assassinado” simplesmente não transmitia a mesma gravidade do crime que eu precisava descrever como um assassinato político, uma execução cometida para silenciar um projeto de poder. Apesar de tudo, alegar o assassinato de uma árvore soava tão peculiar em inglês quanto em português.
No entanto, João Gordo não era uma árvore qualquer.
Sua execução foi planejada especificamente para coagir certas pessoas, que haviam perdido um líder dois anos antes. E é por isso que não demorou mais do que o segundo em que meus olhos se desviaram do pôr do sol, na direção das luzes sobre as águas da Baía de Guanabara, para que meu amigo percebesse que eu estava comparando o crime sofrido por João Gordo com outro crime, um assassinato ocorrido em nosso próprio bairro, no Centro do Rio de Janeiro.
Em 14 de março de 2018 a vereadora Marielle Franco participava da mesa redonda “Jovens Negras Movendo Estruturas [de Poder]” na Casa das Pretas. Eu nunca tinha ouvido falar da ONG dedicada ao crescimento cultural, intelectual e profissional das mulheres negras, assim como não tinha ouvido falar da política socialista e ativista de direitos humanos, até aquela noite fatal em que ela e seu motorista, Anderson Pedro Gomes, foram cruelmente abatidos por nove balas que partiram de um carro com dois homens que os seguiram na saída daquela reunião.
Em questão de horas seu nome alcançou não apenas a cidade, mas também o mundo, com uma repercussão que assassinos raramente esperam ao cometer esse tipo de crime. Pois, embora um assassinato possa ser a morte celebrada de um inimigo, é também o nascimento iminente de um fantasma. E os fantasmas são adversários formidáveis, não somente porque nunca mentem, mas porque nunca morrem e não vão descansar até que sua morte seja esclarecida.
Na verdade, os fantasmas estão dentro de nós, simplesmente nos dizendo verdades que muitas vezes são indizíveis. Os Cariocas, o povo do Rio de Janeiro, rapidamente deduziram quem estava por trás do assassinato de Marielle Franco. Seu tweet na véspera de seu assassinato foi uma boa pista: “Mais um homicídio de um jovem que pode estar entrando para a conta da PM. Matheus Melo estava saindo da igreja quando foi morto. Quantos mais vão precisar morrer para que essa guerra acabe?”
Quando li aquele tweet poucas horas depois do assassinato, senti como se meus olhos encontrassem os de Marielle Franco, sentada do outro lado da mesa, à minha frente. Embora o tweet tivesse sido altamente indicativo, a forma como o clamor imediato na mídia foi tão previsivelmente dividido entre as linhas partidárias também foi bastante reveladora.
De um lado, o luto e a solidariedade com a mulher de quem poucos haviam ouvido falar. Apesar de sua incrível trajetória, vencendo todas as adversidades de uma negra, mãe solteira da favela da Maré, ela fez pós-graduação em Ciências Sociais e Administração Pública, casou-se com outra mulher e se tornou uma legisladora da cidade do Rio de Janeiro. Marielle Franco foi a defensora dos direitos humanos que faltava em comunidades violentas como aquela em que foi criada, um dos muitos lugares do Rio de Janeiro onde há chuvas tropicais de balas. Uma crítica aberta da brutalidade policial e dos assassinatos extrajudiciais, seu tweet não foi a primeira manifestação em que ela confrontou a milícia, um grupo paramilitar cujo controle tácito sobre áreas da cidade alcançava níveis sem precedentes nos governos local e federal – incluindo alguns agentes públicos que celebraram sua morte destruindo imagens da vereadora, enquanto outras autoridades permaneceram visivelmente silenciosas, recusando-se a denunciar o assassinato.
O silêncio deles se juntou a um coro crescente de “e então?” — por parte de pessoas que ainda que nunca tivessem ouvido falar da vereadora exigiam que o fantasma de Marielle Franco imediatamente pegasse uma senha e se preparasse para ser esquecido na fila onde 75% das investigações de homicídio no Rio de Janeiro continuam sem solução. Alguns começaram a defender a polícia antes de conhecer os detalhes do homicídio; não se preocuparam em verificar se – oficialmente – a polícia não havia estado em nenhum lugar próximo da cena do crime.
Ou tinha estado?
A investigação imediata pela mídia foi ofuscada pelos insatisfeitos com o seu assassinato. Eles encheram as redes sociais com acusações de que Marielle era “traficante de drogas” e “vereadora corrupta”, numa tentativa de justificar o homicídio e assassinar também o seu caráter.
A difamação foi tão patética que até o chefe de polícia manifestou grande respeito pela vereadora. Afinal, ela muitas vezes havia ajudado as famílias de policiais falecidos, caídos no imbróglio interminável de violência que invariavelmente tira a vida também dos policiais. Mas que eu me lembre sua voz foi a única entre as autoridades a defender Marielle Franco.
Percorrendo o caminho que circunda a ilha, meu amigo e eu nos aproximamos do protuso toco que havia restado da vítima, João Gordo, que, ao contrário da vereadora, era um sobrevivente da tentativa de homicídio. Os dois crimes, porém, estavam intimamente ligados, porque o assassinato de Marielle Franco não havia sido mais um homicídio comum, assim como o caso de João Gordo não havia sido um crime ambiental cometido para fazer lenha.
Ambos foram cruelmente punidos por ousarem ser os filhos emergentes e muito resistentes da África.



A Árvore da Vida é reverenciada em seu lar ancestral das áridas savanas. Armazena água mesmo nas piores fases das estações. Até mesmo suas flores, seus frutos e sementes e suas folhas são sustento. Alcançando 30 metros de altura e um diâmetro de nove metros, o poderoso baobá pode viver milhares de anos.
Por todas estas razões, presto meus respeitos à gorda prima mais velha de João Gordo no momento em que ponho os pés na ilha de Paquetá, para onde se mudaram recentemente alguns dos meus amigos mais próximos. Maria Gorda está assentada na Praia dos Tamoios há mais de cem anos e, seguindo a tradição, dou-lhe um beijo e um abraço caloroso, embora seja quase impossível envolvê-la, porque, como diz o provérbio moçambicano, “a sabedoria é como o tronco do baobá: uma pessoa sozinha não consegue abraçá-la.”
Repito a tradição sempre que vou a Paquetá, ilha que também foi vítima de preconceito. A história contemporânea do Rio de Janeiro deu as costas à Baía de Guanabara – uma das sete maravilhas naturais do mundo e de onde a cidade surgiu – para apreciar as famosas praias de Copacabana e Ipanema. A baía é considerada irremediavelmente poluída e nem uma Copa do Mundo nem as Olimpíadas conseguiram limpá-la, apesar de todas as promessas. Embora Paquetá não se situe na pior parte da baía, e muitas pessoas nadem ali, eu não o faço – mas isso nunca me impediu de desfrutar de uma ilha primorosa situada no meio desse esplendor.
Saindo da barca, viro à direita – relaxando imediatamente de um jeito que só é possível em um lugar onde não há carros – e sigo o caminho ao longo da praia até chegar à grande dama.
Talvez você não se imagine um “abraçador de árvores” – tudo bem, mas ninguém consegue resistir a um baobá.
Esta foi provavelmente a razão de uma semente ter sido cultivada com amor pelo falecido bombeiro militar Messias Breschnik Ribeiro Lima, que conseguiu fazer brotar a grande árvore. Quando atingiu um metro, surgiu a ideia de plantá-la em Paquetá, para fazer companhia a Maria Gorda. Assim, João Gordo foi batizado em 21 de setembro de 2013, Dia da Árvore. A muda ganhou uma cerca e uma placa com os dizeres: “Minha família é da África. Também sou conhecido como imbondeiro, baobá, ou a árvore da vida, mas pode me chamar de João Gordo.”
A família da África é muito grande no Brasil. As estimativas históricas variam muito, mas dizem que muito mais de quatro milhões de africanos sobreviveram à viagem ao longo dos três séculos de tráfico de escravos do Atlântico para o Brasil. Em comparação com os 338.000 enviados aos Estados Unidos no mesmo período – e pelo fato do Brasil ter sido o último das Américas a abolir a escravidão – é fácil entender como a cultura africana é uma parte tão íntima do Brasil atual. Ainda assim, seus descendentes se encontram espremidos nos centros urbanos do país, onde foram abandonados para improvisar cidades paralelas com governos paralelos e religiões paralelas à fé católica dos portugueses conquistadores do Brasil.
Uma dessas religiões é chamada Candomblé, sobrevivente e resultante do sincretismo de muitas religiões africanas que se encontraram no Brasil nas circunstâncias extenuantes da escravidão. E é uma fé em que a grande devoção a este Universo ainda ecoa no amor do baobá. O Candomblé, como a Umbanda e outras religiões de matriz africana, assim como as tradições indígenas, é desprezado por algumas religiões de denominações evangélicas ou pentecostais que tanto eclodiram pelo Brasil nos últimos 30 anos. Em comunidades pobres que mal têm acesso a mercearias, a existência de várias igrejas em cada quarteirão é impressionante. É inegável que tais igrejas preencheram um vazio de negligência social e institucional com seu pragmatismo e serviço comunitário; no entanto, virando fontes de lucro, evoluindo para a condição de impérios midiáticos e políticos em plataformas de moralidade e intolerância, tornaram-se tão ameaçadoras quanto suspeitas.
Por isso não fiquei surpreso ao ler como armas, drogas e evangelismo haviam se juntado nos “Soldados de Jesus”, a gangue armada que montou barreiras para expulsar a polícia e tomar o controle de bairros inteiros nos subúrbios empobrecidos, consolidando assim seu negócio de narcóticos. Alarmante foi o relato do que fizeram aos terreiros, tradicionais locais de culto da fé afro-brasileira. Eu não pude deixar de imaginar homens armados entrando em minha casa, me forçando sob a mira de uma arma a destruir meu altar hindu, porque é exatamente o que os “Soldados de Jesus” fizeram, fechando os terreiros e violentando o que há de mais íntimo em um indivíduo.
Talvez eu simplesmente dissesse aos criminosos para irem em frente e me transformarem em um fantasma.
Deveria haver muitos fantasmas sussurrando no ouvido de outro amigo e nativo da ilha, Ricardo Saint Clair Matos, quando disse que a destruição de João Gordo tinha sido “[certamente] um crime ambiental, mas o motivo me pareceu ser de intolerância religiosa”.
Ricardo foi um dos primeiros convocados na manhã em que João Gordo foi encontrado decepado. Nascido na ilha há 60 anos, ele retornou na década de 1990 para comprar uma casa com jardim amplo o suficiente para plantar 25 árvores. E através da Plantar Paquetá, sua iniciativa verde, plantou mais de 300 árvores na ilha desde que o grupo foi criado. Voltando à cena do crime no dia seguinte, Ricardo estava acompanhado por quatro integrantes do grupo que tratou do toco. Eles fizeram um corte diagonal para que a água não se acumulasse no topo e colocaram um composto curativo sobre ele. Quando acabaram de colocar o fertilizante em seu solo, Alessandra Bruno viu um tronco boiando no mar.
“Era João Gordo”, disse Ricardo. “A maré deve tê-lo trazido de volta.”
“A maré!”, exclamei cinicamente. Nosso grupo de amigos, reunido em torno de uma mesa para o almoço, sabia exatamente o que eu queria dizer: só poderia ser a Grande, a Mãe, a Deusa do Mar. Em minha própria fé ela é chamada por muitos nomes, mas a maioria se refere à Invencível. Ela também tem muitos nomes em toda a diversidade da África, mas se tornou mundialmente conhecida como Iemanjá, e obviamente ela tinha outro plano para o filho João Gordo, porque o devolveu do oceano, junto com seu maior presente.
Ricardo continuou sua história sobre como retiraram o tronco da água e o colocaram na calçada para ser recolhido pela Comlurb. Por precaução, ele havia quebrado cinco galhos para tentar replantá-los em casa.
Ele recebeu mais de cem mensagens de condolências naquela semana. “As pessoas colocaram flores e até uma cruz junto ao toco de João Gordo. Eu disse a eles que ficassem calmos, que havia uma chance de que ele ainda pudesse renascer.”
Meses haviam se passado quando Ricardo recebeu o inesperado telefonema de um integrante do grupo, Edson dos Santos Almeida, que brincou, como se estivesse mantendo um refém: “Você sabe que estou com o Joãozinho em casa, não é?” Edson explicou que havia levado o tronco de João Gordo para casa para tentar reanimá-lo. Ele o havia banhado em água doce, colocado em um vaso com fertilizante e depois envolvido em plástico, a fim de criar uma espécie de estufa para expelir o sal marinho. Dois meses depois apareceram os primeiros brotos. E Edson procurou Ricardo para dizer que “Joãozinho” estava são e salvo.
A ideia inicial era de que Joãozinho, o tronco, fosse replantado próximo a João Gordo, o toco, que também havia sobrevivido, gerando quatro novos ramos de baobá. Junto com os cinco ramos que Ricardo havia conseguido fazer brotar com sucesso, ficou claro que Iemanjá tinha planos muito maiores para o filho.
E seus planos não pararam por aí.

No Rio de Janeiro não é preciso praticar Candomblé para saber que as cores de Iemanjá são azul e branco; brasileiros de todas as esferas da vida vestem essas cores ao se dirigirem ao mar no dia 31 de dezembro para oferecer flores à Deusa em um ritual de renovação e esperança. O que muitos brasileiros podem não saber é que o culto africano à Deusa sobreviveu por trás do manto azul e branco de Nossa Senhora da Imaculada Conceição, e é por isso que Iemanjá é frequentemente celebrada em 8 de dezembro, dia da santa Mãe de Deus, cujo azul-e-branco também serve de bandeira a uma das escolas de samba mais tradicionais do Rio, a Portela, que tem como padroeira Nossa Senhora da Conceição.
Como não se ganha nada ao acreditar em coincidências, contive as lágrimas de alegria quando Ricardo me disse que os planos para Joãozinho haviam mudado. Então, numa sexta-feira, 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, Joãozinho seguiu para o subúrbio de Oswaldo Cruz. A Portela plantou a jovem árvore devolvida pelo oceano no vizinho Parque de Madureira (também um projeto de reflorestamento de grande sucesso para combater o dilema da expansão urbana). E mais: as centenas de bateristas e milhares de componentes vestidos de azul e branco da Portela vão cantar os louvores aos baobás em seu próximo desfile de Carnaval.
Odoyá!
Não há dúvida de que foi uma vitória diante da maldade daqueles cuja história depende da eliminação de todas as outras histórias para prevalecer. Iemanjá não apenas devolveu o filho com o dom da vida, como o devolveu com multiplicidade. Mas também foi um dos raros exemplos de justiça neste mundo, pois, eu creio, não importa o quanto os mortais se esforcem por justiça, somos incapazes de conseguir muito mais do que vingança. Infelizmente, nem mesmo esta última veio como consolo pelo assassinato de Marielle Franco.
Enquanto escrevo estas palavras, mais de três anos se passaram desde o assassinato da vereadora, e ainda não sabemos quem ordenou sua execução. A investigação inicial foi tão esculhambada que apenas uma segunda investigação-da-investigação resultou na prisão do motorista e do atirador. Desde então tantos pontos foram conectados que é como se um conjunto de culpados tivesse sido revelado. É um retrato que torna difícil até mesmo para a mais teimosa das pessoas manter uma cara séria enquanto finge não notar a ligação com os níveis altos do governo, o que poderia explicar por que os poderes da justiça chegaram a uma interrupção tão brusca.
Algum dia saberemos a verdade? pergunto ao fantasma sentado à minha frente na mesa. Infelizmente ela está acompanhada por muitos outros fantasmas, incluindo o mais recente, Marcelo de Almeida da Silva, um gari, trabalhador com dez anos de casa na Comlurb, que saiu de casa em uma comunidade pobre durante um confronto entre a polícia e a gangue local. De acordo com sua família, os policiais que o levaram ao hospital afirmaram que ele teve uma “convulsão” – apesar do buraco de bala em suas costas. A família identificou o corpo sem a mochila, na qual sempre carregava uniforme, crachá da empresa, identidade e chaves do carro. “Atiraram no meu irmão porque é negro”, disse seu irmão enlutado. A família fez um protesto no Instituto Médico Legal e está implorando por justiça.
Justiça, penso eu, lembrando não só que nove dos 13 baobás mais velhos da África morreram repentinamente após milhares de anos – muito provavelmente vítimas da mudança climática que também tem seus negadores, que refutam evidências sem evidências – mas também que as grandes árvores foram poeticamente substituídas por um projeto de reflorestamento urbano em uma pequena ilha do outro lado do oceano. Então penso também nas Marielles que desde então brotaram por toda parte, transformando o que era normal em inaceitável. Nenhum de nós pode abraçar sozinho a sabedoria do baobá. Refletindo sobre isso, lembro-me de outro filho da África, um outro provérbio: Se quer ir depressa, vá sozinho. Se quer ir longe, vá acompanhado.

Agradecimentos
Muito obrigado aos editores Elizabeth Dodd e Simmons Buntin pela sua dedicação ao texto.
O artigo de Roberto Kaz “CRESCEI E MULTIPLICAI-VOS: O baobá João Gordo renasce numa praça em Paquetá” do exemplar 171 da Revista Piauí foi indispensável para este trabalho.
Ótimas informações sobre os baobás no site da Fundação Joaquim Nabuco.
Muito grato a Ricardo Saint Clair Matos pelas imagens do João Gordo, e por todo o carinho dedicado por ele e pela Plantar Paquetá, ao recuperar a árvore, assim como os esforços não medidos pela salvaguarda da ilha.
Mais uma vez, um agradecimento especial a Liane Sarmento Magalhães pela tradução e amizade.