“Deixa de ser ridículo, Ricky! Elas não comem isso!” Foi o deboche de um grande amigo, daqueles que jamais perderia uma oportunidade me sacanear com uma gargalhada, especialmente na fazenda dele que era todo um mundo novo para o gringo nascido e criado no asfalto, onde meu conhecimento sobre os animais foi limitado aos meus cães e gatos, cujas línguas eu aprendi rápido, como todas as crianças. Vaca, porém, era uma abstração: quando garoto, sabia o que era, mas nunca havia visto ao vivo, como muitas coisas que desconhecia, inclusive a ligação entre os animais e os cheeseburgers de que tanto gostava.
Foi na Índia onde aprendi a lidar com outros bichos, inclusive as muitas vacas e búfalas mendigas; os macacos assaltantes e vigaristas; até um camundongo que visitava meu quarto.
Na verdade, eu acho que foi na Índia onde também aprendi a lidar com gente.
Entretanto, gado era uma incógnita até o dia em que eu visitei um orfanato de bezerros e asilo de vacas velhas, dentro de um lugar sagrado onde participei de uma prática de cunho religioso, na qual se oferece verduras às vacas com as próprias mãos. É considerado um ato abençoador, mas, além disso, é um momento de gratidão, no qual se compartilha com os animais um pouquinho do sustento desse mundo pelo muito que eles nos dão. É um ritual que leva-nos a refletir como fazemos parte de um Todo que também nos alimenta – que também nos sustenta – independente dos nossos sucessos e fracassos.
Bom, um curral fluminense não proporcionou exatamente o mesmo momento de reflexão, com seus bichos enormes, nervosos e até agressivos, já que as mães leiteiras e grandonas perceberam um desconhecido com medo delas – talvez mais do que elas de mim. Uma grande, marrom e chifruda, avançava em mim, queria me dar uma corrida para fora do curral.
Minha oferenda de alface e agrião, então, foi categoricamente rechaçada por elas, junto à risada do meu amigo, sentado na grade de madeira.
Não entendi nada! Nunca havia ouvido falar de vacas recusando verduras e muito menos de uma agressiva. Lá na Índia, chupavam até o sabor de espinafre e cenoura dos meus dedos ao final do alimento.
No vilarejo, eu pulava do meu charpoy muito cedo, feliz ao ouvir os pavões buzinarem de manhã. Feito uma criança de novo, eu queria só brincar com o camelo, as búfalas e os cabritos. Na cidade, fugia cedo para a rua onde podia dar comida às vaquinhas abandonadas, tirando-as das lixeiras onde se intoxicam por não distinguir o plástico da comida descartada.
Porém, na fazenda desse meu amigo, diante da minha situação em que os peões e até as vacas estavam estupefatos pela minha falta de inteligência, ele não aguentou mais: “Que mico!”, ouvi atrás de mim, depois ele acrescentou, “Ricky, seu burro, estão entupidos de cevada. E elas não comem aquilo. Pô!”
Não aceitei a derrota e pulei dentro do curral miúdo – fugindo da rainha agressiva – onde ficavam os bezerros brincalhões que me lambiam todo, mastigando minha roupa, uma roupa que também contribuía ao “mico”: meu kurta, a camisa masculina indiana, meio-comprida, bem prática na roça onde a lógica urbana é inversa: é preciso cobrir-se para ficar confortável. Minha roupa indiana caía perfeita na fazenda.
“Eles também não comem aquilo, Ricky. São bezerros. Bebem leite”, falou secamente, já entediado com minha burrice.
Joguei verdura na cara dele.
Mas minha vontade era jogar bosta, já que não tenho problema de agachar para catar esterco, como fiz várias vezes pelos pastos no vilarejo indiano, onde é ressecado para ser utilizado como combustível. Minhas galochas boiavam naquela lama, também considerada sagrada, como tudo que procede desse animal a quem nós humanos devemos tanto, desde o leite que alimenta nossos filhos até a luz dentro de nossas casas – e tudo que desencadeou a partir daquela benção de iluminação.
Depois da tiragem de leite, os peões começavam a chamar, um por um, as vacas pelo nome, abrindo a grade do curral dos bezerros que não saíram até que o nome da mãe fosse chamado.
Fique impressionado, “Ué? As vacas têm nomes?” perguntei o meu amigo, inteirando-me do nome da rainha agressiva, chamada Labareda.
“Lógico!”
“Mas na Índia elas não têm nome!”
“Pois é. Mas você está no Brasil. E aqui tem nome até para pessoas como você!”
Desta vez, ele viu que eu ia catar esterco mesmo e fugiu da grade.
O meu amigo não entendia porque eu estava tão surpreso ao descobrir que as vacas tinham nomes. Na verdade, eu estava assombrado por esse fato: imagina matar um ser ciente do seu nome?
“Venham cá, seus imbecis,” agachei para falar com os bezerros a sós (desde pequeno, quando descobri que falava a língua dos animais, sempre os xingava com muito carinho e até hoje não tem nenhum animal que passe na minha frente sem ser devidamente insultado) “Cheguem aqui. Preciso falar com vocês. Tenho um recado para vocês. Mas vamos esperar o povo todo sair.”
Não pararam de me lamber.
Circunstâncias inesperadas levaram esse meu amigo a perguntar se eu queria ficar mais tempo na fazenda, já que tinha havido uma emergência familiar e ele precisaria voltar à cidade com urgência. Foi o meu Dia do Fico, sem imaginar que isso significava que eu ia ficar quase um mês do verão, sozinho e isolado, um gerente impostor à frente duma fazenda.
Nas primeiras noites foi difícil dormir, com aquela escuridão que faz você se certificar que os olhos estejam abertos e aquele silêncio ensurdecedor da imensidão que amplificava os frequentes barulhos de coisas e animais ignotos. Depois de acostumar-me com o ambiente, passei um verão ótimo no silencio, sem telefone, sem internet, sem nada. Recomendo muito – a todos – este tipo de intervalo nos hábitos.
Faz você pensar em coisas nunca antes imaginadas.
Eu acordava com o barulho da caseira que chegava às 4:30 da manhã, uma senhora magríssima, toda ressecada, simpática, mas bruta. Até a voz dela era seca, dificultando ainda mais meu entendimento do português dela, para mim, ininteligível.
Uma manhã cheguei entender a fala dela: “Você não queria saber como fazer queijo? Vai lá no curral e traz 20 litros de leite.”
Parti logo no escuro com uma lanterna para encontrar com os três funcionários sentados nos seus bancos debaixo das vacas, naqueles dias antes da ordenha mecânica. Ajudaram-me a arrumar um banco e os baldes, mas minha boa intenção não adiantava muito: ficou-se claro que mal ia tirar uma caneca de leite, muito menos 20 litros.
“Cê qué quantos litro?” me perguntaram, “a gente tira pa você”.
Com minhas mãos já doendo, aceitei a gentileza, sem imaginar que tinha esforços até mais penosos pela frente: você tem alguma ideia do que é carregar duas latas de 10 litros de leite por meio quilometro?
Agora eu sei. Não me esqueço.
A caseira me recebeu com uma risadinha e suas palavras murmuradas. Jogou coagulante no leite e me pediu para voltar em uma hora.
Depois fiquei do lado dela no balcão e começamos a espremer aquela massa coalhada dentro das formas.
Naquele trabalho fiquei menos atrapalhado, até a caseira reparou que eu levava jeito. Tenho certo talento na cozinha. Mesmo assim, fiquei impressionado como fiz sumir 10 litros de leite dentro de uma única forma redonda de queijo minas.
“Não é possível!” pensei em voz alta, a caseira pensando que estava maravilhado com uma descoberta gastronômica.
Não era exatamente isso.
Na verdade, minha pesquisa era a procura de um conhecimento de cunho econômico mais do que culinário. Queijos devem estar entre os produtos alimentícios mais caros que há e foi naquela pesquisa das minhas mãos que descobri o porquê: o custo-benefício daquilo é horrendo. Quanto leite, quanta energia gasta para produzi-lo e transportá-lo, para depois converter aquele volume enorme num treco que sou capaz de consumir em dois tempos. E ainda reparei no desperdício nos baldes de soro que sobravam.
“Não!” a caseira me corrigiu, jogando mais coagulante no soro, “ricota, meu filho!”
Menos mal, pensei. Ainda assim, meus cálculos pesavam e a conta não fechava.
Quando subi o morro mais alto com os cachorros de manhã antes de catar minhas verduras e legumes para preparar meu almoço, fiquei olhando para os horizontes todos, umas terras vastas de ondas verdes de pastos – desprovidos de florestas.
“Caraca! Olha isso, seus canalhas!” conversei com os cachorros, “Como é possível que tudo isso fosse Mata Atlântica! Só por causa do gado? Tanto gado… não é possível! Somos loucos! Queremos o que queremos e não pensamos nos custos de nada, né, seus idiotas?”
Os cachorros concordaram com tudo que eu falei. Talvez essa entrega deles seja porque também são vítimas dos nossos caprichos humanos. Não há animal que não seja, inclusive os muitos que esses nossos cachorros invasores matam, quando eles mesmos ou outros bichos são atropelados por nós, deixando as carcaças diárias de fauna na estrada só nos 5km até o vilarejo mais próximo, ou até as cobaias usadas para testar produtos – sem contar aqueles comendo nosso lixo ou criados só para podermos consumi-los.
“Bom, pensei, contemplando os fatos, “tenho que aceitar o que não posso mudar”, me propus, diante das realidades enlouquecedoras para mim, enquanto olhava para os horizontes. “Ou será que tem alguma coisa que eu possa fazer?”
À tarde relaxei minha consciência pesada para deixar fluir uma pesquisa culinária e alegre. Eu observei com muita atenção como e aonde na cozinha a caseira colocou os queijos para adquirir propriedades diferentes. Até ajudei-a esticar mozzarella e puxar manteiga.
“Deixa que eu te ensine uma coisa agora?” falei para a caseira.
“O que, meu fio?”
“Se chama ghee“, respondi, enquanto acendi o fogão para ferver a manteiga para retirar as espumas e partes sólidas da manteiga até conseguir o azeite delicioso, sem um resquício de cheiro de bicho, conforme feito na Índia desde tempos imemoriais para a gordura básica da cozinha, emoliente, medicamento e combustível nas lamparinas que sustenta luz na escuridão humana – talvez abrindo espaço para a primeira alfabetização.
Embora ela tivesse adorado o ghee, o devedor era eu, que havia aprendido muitas coisas pelas mãos dela em um dia só, refletia eu, avaliando o balanço do dia enquanto assistia o transito da natureza mudar com o pôr do sol. Sentei-me na varanda, cercado pelos cachorros chatos que concordam com tudo que nós falamos. Esse ritual da tarde foi interrompido pelo telefone que tocava lá dentro da casa, um telefone que nunca tocava, nem sequer funcionava direito. Imaginei que fosse aquele meu amigo, já que tinha ouvido um rumor por lá havia uns dias de que ele estava tentando falar comigo.
“Alô?”
“Tá vivo, meu filho?”
“Mais que você”
“E mais feio também”
“Que que tu quer? Tô em reunião.”
“Sei bem a reunião que tu tá.”
“Fala logo! A que devo este desgosto?”
“Ricky, tô bem enrolado aqui. As coisas não andam bem. Vai chegar um envelope ai com os cheques dos funcionários. Faz o favor de pagar todo mundo. É só tocar a campainha que todo mundo vem para assinar. Estão dentro do envelope.”
“Tem um cheque para mim?”
“Vai ter. Nominal. No valor daquilo que você vale.”
“Você sabe que sou bandido e maluco, cara! Te passo uma perna que…”
“Ah! Cala a boca! Me ajuda nisso, por favor.”
“Ok, ok! Mas agora falando sério… tá tudo bem? Precisa de alguma coisa?”
“Mais ou menos… coisas de família. Só preciso deste favor mesmo.”
“Então tá! Pode deixar!”
“E na fazenda? Tudo bem?”
“Tá… mas tem essa vaca, a Labareda…”
“Ué? Que que houve com ela?”
“Nada. Só que ela é fofoqueira: me contou todas suas desgraças. Falou que você é ridículo, babaca, um trouxa…”
“Eu vou comer o fígado da Labareda – acebolado – na tua cara!”
“Ah não…” Não gostei nada da ameaça infeliz.
“Ah! Por que você não vai rezar para esses teus deuses hindus! Senão vai tomar lá no meio do teu…”
Desliguei na cara dele. Intimidade é uma merda.
Blasfêmia também, mas é engraçada.
Meus rituais de manhã, ao acordar, são inabaláveis. São práticas devocionais, de yoga, agradecendo por mais um dia de aprendizado, mais uma oportunidade – depois o dia segue de forma improvisada, já que nós não somos os únicos autores dos nossos dias. Na fazenda, depois dessas práticas e um bom café, botava as galochas para me fingir de capataz – um impostor – para inspecionar o curral e andar por todos os pastos. Ou seja, fazer nada e enganar ninguém.
Passei dias assim, ensaiando esse papel – até que um dia o capataz de verdade me procurou, pedindo, com muita gentileza, para eu deixar o portão da fazenda aberto à noite.
Foi muito difícil eu entender o português desse pessoal da fazenda, do interior. Como professor de idiomas, foi fascinante ver minha incapacidade diante de uma pronuncia e sintaxe muito diferente daquilo a que eu estava acostumado e testemunhar meus recursos: eu decifrei as palavras caminhão, levar e gado de corte. Fingi que entendi – claro – e depois fui preenchendo o contexto. Embora eu desconhecesse a expressão gado de corte, não me soava nada bem.
Lembrando-me do fígado da Labareda – nada bem!
Resolvi dar uma sondada, jogando um verde no curral: “O gado de corte pra amanhã tá aonde?”
A ficha foi caindo que eram o gado separado já num pasto, tourinhos que obviamente não serviam para leite.
Não servem pra nada.
Ou seja, servem para uma única coisa.
Foto: Nicolau Vinciprova
Os pequenos já me conheciam e estavam me chamando pra brincar e querendo saber o recado que tinha para eles. Eu não consegui olhar para os bezerros e fui andando rápido para chegar naquele pasto do gado condenado antes do pôr do sol escurecer o meu caminho.
O rebanho ficou longe de mim no outro lado do pasto, já escurecendo na sombra do morro. Muito atentos a tudo, suas orelhas ficaram em pé, apontadas na minha direção, medrosos, preparados para fugir se eu entrasse no pasto deles.
Eu queria saber o nome de cada um para pronunciá-lo. Na verdade, não sabia exatamente o que queria fazer.
Tirei minhas galochas e até as meias para sentir bem a mesma terra onde eles pisavam, como se fosse entrar num templo – uma reverencia profunda na cultura indiana – e agachei para tocar o solo com a mão direita, trazendo um pouquinho da terra para o coração.
Sorry, pensei, nós temos um meio valor pela vida. Nós não pensamos nos outros.
Um cachorro que me adotou – um dos muitos resgatados por meu amigo do abandono espúrio – veio me levar de volta para a casa.
A caseira sentou-se à mesa no café da manhã para continuar com o meu ensino. Fez a gentileza de me trazer verduras que eu não conhecia: taioba, caruru, beldroega, serralha e outros matos estranhos que ela catava para mim, um bicho gringo, um esquisito que não comia nem carne, nem frango, nem queria ovo.
Quebrou o silencio com uma pergunta, “A vaca na Índia é sagrada, é?”
Sorri – quantas vezes me faziam essa pergunta, às vezes com deboche, como se fosse coisa de ignorante. No caso dela, era curiosidade mesmo. Ela me explicou que tinha visto um documentário sobre a Índia na televisão. Tomei mais um gole de café, pensando em como explicar aquilo para a mulher que metia a faca no pescoço dos porcos para fazer as salsichas de que tanto gostava esse meu amigo. Poucos dias antes eu havia ouvido o grito aterrorizante lá do curral e depois presenciado as gotas de sangue que pingavam das salsichas frescas, penduradas na cozinha.
“Na verdade, toda vida é sagrada”, respondi sem regalias, “mas a vaca merece uma reverencia especial da gente. Do gado provem o fertilizante para produzir comida e também serve para combustível. A urina deles era a amônia para desinfetar o solo das primeiras casas e a força para o transporte e para lavrar a terra. Do leite vêm tantos produtos: do queijo até a gordura do ghee que você gostou, que serve para tantas coisas, inclusive a luz. Até da morte deles, veio o couro, o tecido sem igual e com tantas utilidades.”
Ela sorriu como se estivesse de acordo, mas optou pelo silencio para esperar por mais explicações enquanto me servia o curau de milho que ela tinha feito.
“É que na Índia ainda há uma memoria viva de um pacto muito antigo entre os bovinos e nós humanos, um ajudando o outro. Toda a fartura que temos na vida é devido a esse pacto. Não teríamos chegado a onde chegamos sem ter passado por este acordo, no qual o ser humano parou de vagar atrás de comida – nômade – e começou a produzi-la e daí nasceu o comércio, proporcionando uma das coisas mais valorizadas do ser humano.”
“Dinheiro?” ela perguntou, com uma risadinha.
“Quase!” pensei, antes de explicar, “a economia, o comércio, fez com que os seres humanos também começassem a ajudar um ao outro também de uma forma mais íntegra, um produzindo milho, por exemplo, e outro, abóboras, deixando o precioso tempo livre, o ócio, o espaço no tempo desprovido das tarefas constantes de caça, onde é possível estudar, pensar, crescer, criar. Aquilo fez toda a diferença. Só temos que agradecer a este pacto. É considerado uma covardia horrenda machucar os bichos que tanto nos ajudam.”
A caseira tomava o café, sorrindo. Ou ela estava gostando da explicação e estava de acordo ou talvez estivesse rindo da minha insolência em explicar aquilo que talvez eu entendesse na cabeça, mas não nas mãos. Afinal, eu não criava bichos e nunca havia matado para me alimentar. Nunca tive filhos dependendo da minha produção. Ademais, meu gosto pelos laticínios não vem sem seus próprios custos éticos – caríssimos – e ela os conhecia muito mais do que eu.
Ou pode ser que ela só estivesse contente com a companhia e querendo ouvir um pouco sobre outros mundos.
Foi a caseira mesmo que tocou a campainha para mim. Dentro de pouco tempo apareceram os funcionários, uns jovens e velhos, rústicos, um ou outro que eu nem reconhecia da fazenda. Eles chegaram à varanda com certa timidez, um receio, talvez preocupados por não tenham sido avisados que o gringo estranho na fazenda era o novo patrão e eles nem sabiam.
Expliquei a ausência do patrão verdadeiro e retirei os cheques do malote. Um tal de Jean foi o primeiro que chamei. Em vez que receber o cheque, ele bruscamente agarrou o malote, tirando de dentro uma almofada de carimbo que eu não havia percebido.
Tive que fazer uma cara de tédio, rápido, como se não estivesse vendo nada demais ao vê-lo assinar com o dedo. Nunca presenciei uma coisa dessa; fiquei atônito.
O primeiro passo do próximo funcionário, Roberto, tampouco foi de receber o cheque. Ele tirou o chapéu e depois retirou um papelzinho do bolso, do qual copiou sua própria assinatura. A maioria dos outros sabia assinar, mas alguns também receberam o salário com um jeitinho.
Acompanhado pelos cachorros, parti com eles mais uma vez para o morro.
“Jacu!” chamei, mas desta vez nem foi um dos meus xingamentos. É que vi uma pluma vermelha do pássaro grande e escuro que chamou minha atenção. Era um jacu lindo que passou rapidamente pelo caminho, fugindo dos cachorros. Pensei naqueles homens e o mundo deles que nem sequer imaginava. Como seria não saber ler? Escrever? Que será deles quando a ordenha mecânica chegar? Os filhos deles?
Também pensei em outros filhos, os de quatro patas, justamente quando um comboio chegou pelo portão da fazenda, dando-me um calafrio.
Desisti de subir o morro e despachei os cachorros para não atrapalhar o trabalho dos funcionários e para não me acompanharem até o curral, onde queria ficar a sós com os pequenos.
“Olha só, seus doidos,” falei ao entrar no estábulo deles, cheio de lama, “tá na hora de bater aquele papo.”
Aqueles olhos negros, redondos com seus toldos de cílios olhavam para mim. Senti-me agradecido que, dentro dos destinos possíveis, os bezerros estavam bem na fazenda do meu amigo, uma produção pequena e local. Tem lugares que não são assim: existem as produções industriais onde podiam estar aprisionados e torturados dentro de cubículos individuais, separados das suas mães, chorando, só porque tem um mercado para aqueles insatisfeitos que querem carne ainda mais macia – a vitela – uma pratica odiosa, abominável, que me enche de ira só de pensar nela. Não imagino uma produção desnecessária mais vil.
Mais do que acostumados com minha visita diária, os bezerros começaram a chupar minha roupa e brincar comigo. “Chega ai! Huddle!” falei ao agachar para falar com meu time de futebol, “Teus irmãos e primos vão embora hoje. Não adianta chorar,” falei, quase engasgando antes de me recompor, “também vou para a morte, todos nós, ninguém aqui escapa, viu?”
Umas arapongas nas árvores perto do laguinho me interromperam estupidamente.
“Chulas!” cuspi o meu xingamento preferido para elas.
Pingava de suor naquele cubículo no calor matinal cor do céu do verão, “Falei para vocês que temos que aceitar o que não podemos mudar – mas acho que fui um pouquinho precipitado…”
As palavras e a história da Tradição que nunca tinha explicado a ninguém antes da caseira começaram a se tecer dentro de mim: “Uma coisa que eu posso fazer é contar a sua história a todo mundo. Para que conheçam vocês. Eu prometo isso a vocês. Seria muito bom que entendam que ahimsa é mais do que uma visão: é toda a lógica de não fazer com o outro aquilo que não gostaria que fizessem com você é ter o valor para a vida. Que esse valor necessita incluir aqueles que não têm como se defender e não falam…”
Pisquei.
“… bem que a gente conversa muito e vocês falam pra caralho!”
Pisquei.
“Pô! Desculpa ai! Foi mal. Tem jeito não: vou morrer grosseiro. Não contem pras suas mães não – especialmente para Labareda!” Olhei diretamente para o filho dela, o marronzinho sorrindo ao ouvir o nome da mãe dele.
Abraçando todos os bezerros, agradeci um por um por uma das maiores bênçãos que há: tempo livre para pensar.
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