Quando vi o SANGUE escorrendo no rosto da velhinha sentada na minha frente, eu estava em pé, me equilibrando depois de mais uma batida de ônibus sucata de Santa Teresa. Foi passando a última curva antes de chegar à minha casa que o ônibus bateu de frente com um poste, despercebido e infeliz numa cegueira de chuva e de obras infindáveis de Santa Teresa.
Banquei o cavalheiro do lotação, passando meu lenço pra ela: “A senhora, por favor, fique calma. Tô vendo que foi um corte pequeno. É que tem muito vaso sanguíneo na testa. Está tudo bem”.
“Eu sei, meu filho,” respondeu a portuguesa grisalha, agradecendo a gentileza, “isso não é nada… você que não sabe o quanto já sofri nesta minha vida! Isso aqui é o de menos. Está tudo bem!”
Nada estava bem.
Mesmo assim, não segurei o meu sorriso quando a velhinha machucada e a gordinha assustada, sentada uma ao lado da outra, se olharam, deixando fluir uma risada entre desconhecidas pelo absurdo de tudo o que aconteceu. A espontaneidade desse povo ainda me encanta – apesar dos pesares, que têm sido muitos ultimamente.
Muitos!
O lenço no bolso é um hábito antigo que apreendi tarde, nas minhas muitas viagens à Índia, onde o uso dele é obrigatório por vários motivos, numa terra onde, muitas vezes, a conveniência moderna de higiene com água e papel nem sempre está ao alcance. Mantive o hábito, mas o lenço acaba ficando guardado no bolso, limpinho, esquecido e substituído pelo papel toalha, fornecido somente para ser jogado fora, como muitos objetos convenientes mas desnecessários que poluem o mundo.
Além do lenço, lá na Índia também aprendi que tem sujeira que não sai nem com água nem com pano, mas eu descobri aos poucos como solucionar isso. É a prática de higiene mais importante que há.
Mas antes de explicá-lo, saiba que o lenço no bolso é realmente uma boa; mesmo assim, ninguém anda com dois lenços, muito menos três: no ônibus, me dei conta que outra velhinha sentada atrás tinha aberto o lábio; uma moça jovem também bateu com a testa na cadeira à frente dela. Ou seja, não faltou sangue para o povo se revoltar contra o motorista, numa gritaria contra os poucos que o defendiam, testemunhas do acidente que ocorreu em circunstâncias fora do controle do “piloto” – um dos poucos bons e responsáveis da nossa linha de ônibus sucata.
Eu já acho que nosso motorista ficou cego por outra razão. Infelizmente ele tinha acabado de sofrer um xingamento horrendo de um passageiro abusado que tinha se recusado a pagar a passagem.
Saiba que nada – absolutamente nada – cega como a raiva.
Nós, os passageiros pagantes, olhávamos um para outro, confirmando o constrangimento causado pelo trambiqueiro, indignado com o trabalhador “certinho” que ousou chamar-lhe a atenção. Essa pessoa espúria o esculachou, berrando com uma suposta razão que jorrava de uma lógica (que nunca entendi muito bem aqui no Brasil) onde delatar ou corrigir alguém errado acaba sendo mais feio do que o erro original. Ninguém no ônibus teve coragem – ou saco – para colocar o abusado no devido lugar, tanto que o mesmo desceu ileso, xingando, justamente uma parada antes da batida. Senão, no mínimo, ele teria levado um banho de vidro; no máximo, teria pago a passagem para o outro mundo.
Farto da cacofonia de palavrões, ameaças, reclamações, opiniões e reinvindicações depois da batida, foi a vez do motorista gritar: “Chega! O que que vocês querem: chamar a polícia e a ambulância ou querem que eu leve vocês pra casa?”
Vocês tem alguma dúvida da resposta?
“Bora piloto! Queremos chegar! Tem nada pra fazer aqui não!”
“BBOORRAA!!”
“Tô com fome!” gritou um palhaço, rodeado por gargalhadas.
Até as machucadas imploram para ir embora dali, melhor era se curar em casa. E é melhor mesmo, porque minha vizinha, por exemplo, outra senhora de idade, ainda está esperando uma ambulância que foi chamada há dois meses, quando sofreu um derrame levinho que, afortunadamente, resultou em nada – exatamente o mesmo resultado da chamada para o SAMU.
Enquanto vários passageiros gravavam e tiravam fotos – ou para processar a empresa ou para ter um pouquinho de atenção no Facebook – o motorista chutou o vidro quebrado da frente pela porta. Acelerou o motor para sair do buraco e continuou o caminho – sem o apoio dos guardas da CET Rio para guiar o trânsito de mão única, já que sofreram vários assaltos onde tiveram os rádios roubados. Eu não sabia daquela utilidade de rádio no morro, como não sei de muitas coisas naqueles outros Rios de Janeiro.
Cheguei ao meu portão, encharcado da chuva depois do acidente. Descendo a escada do jardim vi o focinho do Agamenon, meu gambá querido, lá no alto do paredão, dentro buraco dele. Provavelmente estava com fome, mas sem querer sair na chuva, já que eu nunca o tinha visto parado na porta da casa dele à noite. “Peraí, rapaz, vou deixar um banana aqui perto pra você pegar – preguiçoso nojento! Estúpido! Seu ridículo! A chuva é para se molhar, caralho!” Fui resmungando pelo quintal até a lavanderia, onde botei tudo de molho – menos o lenço, porque os lenços não são emprestados, são dados. Agamenon, sem entender nada, nem piscou enquanto escutava todo o xingamento que eu não tinha jogado em cima do trambiqueiro do ônibus.
Mas ele levou uma banana! Uma a menos para os tucanos, os outros passarinhos coloridos, os micos delinquentes e os Munsters doidos (a família de camundongos do jardim), que vêm todas as manhãs para serem alegremente xingados por mim, um por um. É um grande prazer, uma benção, compartilhar aquele momento pleno com a natureza de manhã cedo – relembrando o valor de ajudar os outros, em um mundo onde cada um depende do outro dentro da mesma Ordem que também botou essas bananas para nós, não se sabe por quê, donde e como. Mas sabe-se que não é por acaso. Nada é por acaso. Até os “acidentes” acontecem – como todas as ações – por algum motivo, embora seja desconhecido ou indesejado. No mínimo, as coincidências sacodem o suficiente para fazer uma pessoa parar e pensar.
Ainda molhado, acendi a lamparina na sala grande – escassa de tudo, menos de um grande tapete e a parede de janelas sobre a cidade – sentei no chão e fechei os olhos. Escutando a delícia da chuva, comecei a ouvir também músicas distantes, desagradáveis para mim, uma exaltando “o Senhor”, a outra pornográfica e com uma batida mais forte do que a do ônibus trêmulo de tão sucata que é. Não adianta, Ricky, relaxa, me dei uma ordem, Este mundo não vai ser do jeito que você quer mesmo.
E não vai mesmo, porque foi justamente pensando nisso que ouvi tiros. Como sempre ouço tiros, desde a morte súbita das UPPs. Aliás, foi poucos dias depois da batida do ônibus que a porta da varanda da minha vizinha foi perfurada por uma bala – muito bem achada e não perdida – na sala dela. Acredito que sei o momento em que aconteceu, já que foi em um dos raros momentos em que o barulho do tiroteio – normal e cotidiano na vida pós-UPP — me obrigou a me jogar no chão.
E a mais uns poucos dias da bala perdida houve outras: o próprio Dom Orani Tempesta, arcebispo do Rio de Janeiro, abandonou o carro para se ajoelhar e rezar na calçada a uns metros do portão da minha casa, junto com os passageiros de mais um ônibus sucata de Santa Teresa; todos se protegeram de um tiroteio de manhã na rua paralisada – paralisada não só de medo, mas pelos trechos esburacados das obras atrasadas do bonde. O mesmo bonde que ia ficar pronto para Copa do Mundo e não estará pronto para a Olimpíada. Só que agora não é mais uma obra atrasada: é uma obra parada mesmo – abandonada como a poça e o riacho de água boa que tinha no meu portão, jorrando de um cano da CEDAE, estourado pelos operários incautos e desmotivados que sumiram e deixaram a casa do meu vizinho uns dias sem água.
Bom, se não me pagassem acho que eu também não ficaria naquela trincheira, depois do calote da empreiteira que também não recebe há meses de um Estado falido – sempre falido para algumas coisas e outras não.
Antes do chá de sumiço dos operários, eu tinha chegado cedo vários dias e encontrado a galera dos peões sentados no portão, discutindo um com o outro para decidir quem ia até quem-sabe-aonde para encher o garrafão improvisado deles para trazer água de beber.
Merecia uma foto aquele latão patético de plástico de que dependiam para se hidratarem, exatamente como merecia uma foto o monte de copos de plástico que deixaram espalhados na calçada e na poça d’água na frente do meu portão.
“Pô, desculpa aí mais uma vez pelo cano quebrado. Chamamos a CEDAE de novo, mas eles não vieram – de novo,” explicou um peão simpático, um senhor de idade, o mais velho da turma que ficou quase uma semana sentada na rua, supostamente sem poder andar muito com o empreendimento até que a CEDAE resolvesse o vazamento causado pela própria imprudência dos operários, sem os equipamentos certos e sem supervisão.
Passei o peso daquele garrafão feio que eu tinha enchido mais de uma vez para o peão. Agradecido, ele prometeu que “se [a CEDAE] não vier amanhã, eu mesmo vou dar um jeito nisso, valeu?”
“Valeu!” Não entendi bem por quê não fez isso na hora em que eles tinham arrebentado mais um cano da rua – como eu não entendo muitas, muitas coisas que ninguém nunca vai entender do grande mistério que é o conjunto das obras pela cidade – mas agradeci a gentileza dele em nos ajudar. Ainda bem que foi um homem não só de palavra mas de ação, porque ele consertou o estragou “perfeitamente”, segundo o técnico da CEDAE, que finalmente chegou para atender a chamada uma semana depois – e uma semana depois daquele peão simpático e sua turma toda sumirem para nunca mais serem vistos por aqui.
“Pô, desculpa aí pelo atraso. É que – sabe como é que é, né? Távamos com milhões de litros vazando lá na Tijuca. Tu viu, né?” O técnico da CEDAE tirou o capacete para se coçar. Não tinha muito que falar nem o que fazer com uma semana de atraso. Melhor era se coçar mesmo.
“Vi na Globo”, respondi. A Globo, pensei com o sarcasmo que procuro medir hoje em dia, já que agrega absolutamente nada a este mundo. Aquela Globo que percorri no dia em que Dom Orani reinou suas páginas, agachado no meu portão. A Globo, onde – uma vez satisfeito vendo que D. Orani não havia sido ferido – procurei em vão umas respostas básicas de jornalismo investigativo: Quem estava atirando em quem? Por que aqui? Por que a briga? De onde vêm essas armas? O histórico? O plano?
Não achei as respostas, mas acabei ficando profundamente sentido por outra reportagem – uma matéria tão obviamente secundária à de Dom Orani, embora fruto do mesmo tiroteio – a da mulher que perdeu seu filho por uma bala – achada e não perdida – dentro do corpo do próprio filho. A mãe se banhou com o sangue do filho no rosto. Sangue que era nada mais nada menos do que o seu próprio, porque era do seu filho.
Lembrei na hora da velhinha no ônibus segurando o sangue com meu lenço no rosto, rindo de que já sofreu coisa muito pior nesta vida.
“Ricky, seu burro, jura que você espera esta investigação da Globo? Tu tá aqui há quanto tempo, hein rapaz? Deixa a Globo em paz, pô! O povo quer aquilo. É negócio; precisa prestar serviço público não, pô!” Um amigo meu me sacudiu com um sarcasmo que talvez tenha servido mesmo para agregar algo; pelo menos me apontou o ridículo da minha revolta no dia depois do tiroteio em Santa Teresa, o dia em que a Globo dedicou-se a fornecer 48 horas de cobertura sem parar sobre o massacre em Orlando, uma vez que – aparentemente – tudo estava bem aqui no Brasil, não tinha nada tão interessante para investigar com a mesma importância do crime horrendo de Orlando.
…O Brasil perdeu só para a Síria no ano passado em número de mortes, tá? E não se sabe exatamente por quê.
Bom, estou longe de entender de jornalismo e de como as manchetes são escolhidas. Realmente, o crime em Orlando foi tão aterrorizante quanto intrigante. Mas também foi tão assombroso e doente que, por incrível que pareça, não deixou nada a ser investigado. Isso mesmo! Muito pouco a averiguar, já que o povo daquele meu outro país quer aquilo: a liberdade de qualquer um – ou um louco qualquer – passar lá no supermercado para comprar biscoito, um refrigerante e uma arma de fogo semiautomática.
Restou, então, o trabalho ardoroso de aceitar, assumir, engolir – engasgando – aquela sabotagem, mais um massacre que não será o último do tipo, um crime do qual não há o que investigar para prevenir um futuro. Desgraçadamente.
Enquanto isso, no Brasil, ficou um grande desejo de entender a história atrás do barulho das armas semiautomáticas que ouço da minha janela aqui no Rio de Janeiro, quase todo dia.
Naquela noite na minha sala, depois da batida do ônibus e dos tiros, fechei os olhos para começar o trabalho de limpeza – a limpeza feita sem água e sem pano, a mais profunda que há. Comecei com as lembranças dos dias mais marcantes: o sangue da velhinha; os tiros; a pichação de “Cuidado! Zona de assaltos”, um pouco depois do lugar onde, uns seis meses antes, dois tipinhos me pararam à noite com um facão apontado para o meu peito, os mesmos, provavelmente, que assaltaram uma amiga minha em pleno dia com um soco na cara. Ela, contratada para ajudar um povo indígena brasileiro contra uma doença gravíssima, um povo que sofre um genocídio neste momento – pelo menos aqueles que ainda não se suicidaram – uma situação que não tem prioridade nenhuma nas pautas de nenhum dos times, nem os favoráveis e nem os contrários aos vários “golpes” de estado – inclusive o time daqueles que não tem time – e também me lembrei de outras várias hipocrisias incontornáveis de todos nós.
Sentado no chão, recebi e depois afastei um por um aqueles pensamentos horrorosos – e também apaguei os engraçados, as gargalhadas das mulheres que riram da própria desgraça no ônibus e o palhaço que queria chega em casa e que estava com fome. Comecei a limpeza da única casa que há – aquela lá dentro – bagunçada pelos impulsos para me ocupar, me entreter, me distrair. Observando como os pensamentos se conectam um ao outro, sempre no intuito de julgar alguém ou a mim mesmo, de concluir, de obter alguma coisa, de completar alguma coisa. Guardei até aquela velha necessidade de ter uma opinião.
Peguei cada pensamento – um por um – e os esfreguei bem para ver o que eram de verdade e de onde tinham vindo. Depois os varri para abrir um espaço entre eles, até o máximo possível, para encontrar os recintos pequenos embora nitidamente limpos, onde se encontra um lugar calmo para refletir que a felicidade não depende do mundo e das pessoas agirem do jeito que eu desejo. Que há uma razão por trás de todos os mistérios do universo que ninguém entende….
tipo CEDAE…
O contrário desta prática limpeza é descrito pela imagem abaixo, onde a imaturidade leva uma pessoa a insistir que o universo precisa se alinhar numa pirâmide embaixo dela, apoiando a lógica indiscutível do indivíduo – como a do trambiqueiro do ônibus e dos nossos políticos que reinam do topo da montanha falsa, exigindo seus privilégios, decretando que seus gostos e aversões sejam atendidos prioritariamente, sem pensar a que custo, e sem reconhecer que há ao redor outros indivíduos com aquela mesma velha opinião, sem enxergar a todos com o mesmo desejo primordial de serem felizes – inclusive todos os seres que não falam e estão à nossa mercê.
Esta higienização é feita diariamente como parte de uma vida de yoga. Não é tão fácil quanto levar um lenço no bolso, mas lhes garanto que, se esta limpeza da mente não for feita, o indivíduo vai acumular sujeira, sempre culpando os outros por tudo que desagrada, sem enxergar os próprios erros. Esta pessoa – sem ter cultivado paciência com as próprias discrepâncias e muito menos com as dos outros – sempre vai atacar, reagir e não agir.
Agir é uma escolha feita na calma daquele recinto entre pensamentos, onde há espaço suficiente para se enxergar tudo com compaixão.
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